Escritas do fundo do mar

29
Jun 10

Dona Joaquina, senhora de pose fina, levantou a pesada impaciência e fulminou o marido, já combalido, com o habitual olhar 2 cabides. O coitado do senhor Alfredo, habituado a viver no medo, levantou-se e aquiesceu a pouca sorte, trocando de mesa com o Aristides e parceira. Que bandalheira.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

Trocados os assentos quentinhos, ficam os que não podem e os que por direito não se mudam. Agitam-se jogadas mortas e espetam-se vazas tortas. Começa nova contagem e novo leilão. Dois sem trunfo, pois então, que isto de ter pontos é coisa para versados. Não se iludam e estamos conversados.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

Alfredo “Às de Trunfo”, melhor jogador lá da rua, dá de avanço em piropos o que lhe falta em jeiteira, enquanto a parceira amua. Mais uma voz de papo cheio que acaba num malvado carteio. Devias era estar deste lado que já não te armavas em engraçado. Jogou-se o que deu. Valeu? Sim… um cabide dobrado.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

Ouvem-se cadeiras e fumaças apressadas, que o Oliveira já está à espera. Mais a Vera. Com esses é só maçadas. Jogam transfer não sei para onde, nem sei para quê. Deixa lá, o homem é Conde, não se vê?! Mas podia jogar com alguma nobreza, sempre dava um tonzinho diferente à mesa.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

 

Laurentino e parceira olearam a placa a noite inteira. Antes da carta certa murmuravam lamúrias entre dentes, soltos mas reluzentes. Não há lugar para brincadeira! O jogo quer-se sério e vitorioso. Para falha, já basta o tropeção adulteroso. Jogas tu, trinco eu. Troca que não gosto de fazer de morta.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

Entre espadas e outras abanadas, Alcina era mais dada a copas, topas? Assuntos de coração que não se resolvem com paus, pelo menos maus. Para bater couro mais vale jogar ouro. Pelo sim pelo não, corta-se do morto e apura-se da mão… não vá dar para o torto e não haver solução.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

De porte autoritário e mandão, Manuel Juiz, o doutor, era dos árbitros um senhor. Ou talvez não. Mandava subir e descer, carregava em botões e dava cartas, fazia da pose o saber e iludia as disputas mais fartas. Mais dado às artes do xadrez, onde sentia ser o rei, de Bridge sabia as cores e do resto nem falarei.

 

- Pares sobem, jogos descem…

 

Campeonato de manha tamanha só podia ser num local. Depois do como é preciso o onde, e para isso não há igual. Sabemos onde se joga bem. É num clube onde ninguém se esconde: jogo eu, jogas tu e o Abel. Ainda joga a prima, a tia e a mãe e ainda há espaço para mais alguém. Senhoras e senhores, eis o CBL!

 

- Pares sobem, jogos descem…

Bilhetado por Brunorix às 17:29

26
Mai 10

P.P. (Personagem Principal), seguia pela estrada do conto em direcção ao sol que se punha por escrita imposta. Guiava com a tranquilidade própria de quem segue um caminho orientado e acelerava o suficiente para lá chegar. Nem muito, nem pouco, apenas o suficiente.

 

O seu carro de confiança era o mesmo do ano anterior, o que lhe deixava espaço para qualquer manobra. Sabia de cor o número de voltas que precisava de dar ao volante se quisesse escrever um romance, ou a força com que travar em caso de choque literário, ou até o buzinar enfurecido em caso de engarrafamento de escritor.

 

Homem e máquina eram um só respirar que fluía pelas linhas da palavra escrita. O rumo não podia ser mais tranquilo, nem mais literário.

 

De repente, um estouro quase jornalístico fez perceber que rebentara um pneu. Guinou umas palavras para a esquerda, travou outras para a direita e a custo, e susto, conseguiu encostar na berma certa.

 

Saiu e verificou com estupefacção o estado degradado do pneu direito que agora era torto. Por desígnios de um crítico qualquer avistou uma área de serviço literário a 500m. Rastejou o carro para lá e pediu ajuda a um mecânico de letras…

 

- Eh lá! Esse pneu já não escreve nem mais uma linha!

 

- Pois é… já viu o meu furo?!

 

- Não se preocupe que veio ao sítio certo. Como prenda pela sua extraordinária condução literária, tem direito a uma edição grátis do seu próximo pneu!

 

- Nem pensar! Faço questão de ser eu a escrever o remendo!

 

- Mas não é um remendo, é uma edição nova. Além disso não pode recusar, faz parte do seu mérito!

 

- Não, não. Isto não passa de um exercício e se insistir deixo simplesmente de escrever.

 

- Mas assim a confiança do carro…

 

- ...

 

Bilhetado por Brunorix às 18:34

11
Mar 10

 Recebido:

 

1 - Uma alface assassina um homem.

2 - Causar efeito de perdão no leitor.

3 - 15 Minutos (revisto).

 

 

Devolvido:

 

Querida Alfácia,

 

É verdade. Tudo o que tens ouvido sobre mim é verdade. Fui eu que o matei e se fosse hoje voltava a matar.

 

Eu não podia ficar plantado à espera que as autoridades fizessem o que lhes compete. Sabes bem como é a justiça na nossa Quinta. A maneira bárbara com que ele te pisou as folhas, as dentadas nojentas que deu no Alfacinho e na Alfacinha. Eu não podia meu amor, percebes? Os nossos filhos morreram no prato enquanto nós sangrávamos na saladeira! Ainda hoje mexo mal o caule esquerdo. E tu minha Alfácia? Cheia de manchas castanhas e a cheirar mal enquanto as lágrimas de mãe te corriam pelas folhas do desgosto… foi demais para mim.

 

Ainda hoje penso que foi a mão de Deus que atirou aqueles dois garfos na direcção da testa dele, porque eu sinceramente não sei onde fui buscar forças para o fazer. Tenho recebido cartas de todos os legumes da Quinta a felicitar-me pela coragem e por nos ter libertado daquele malvado. Parece que a paz reina agora por aí.

 

Espero que compreendas minha Alfácia. Eu tinha que cumprir o meu papel de pai e de marido. É a última vez que te escrevo, pois estou na bancada da morte. Fui condenado à cozedura por panela de pressão. O meu corpo vai-se desfazer na água a ferver e passarei a ser um qualquer puré verde. No entanto, não me arrependo! Faria tudo de novo.

 

O Padre saiu daqui agora mesmo e até a última refeição dispensei. O meu último e único desejo é saber que me compreendes e que me perdoas.

 

Com todo o amor,

Alfácio

 

 

Bilhetado por Brunorix às 13:42

09
Mar 10

Se um dia o sol falasse iria dizer tudo o que eu estou a sentir. Cada raio que dele saísse seria um pensamento meu em direcção a ti. Durante muitos anos as nuvens impediram que a luz aí chegasse.

 

Mas hoje... hoje o vento da vida limpou o céu e o sol falou.


Se um dia as árvores voassem migrariam do meu sonho para o teu. Abririam as asas do desejo batendo os ramos de ansiedade e voariam no vale do destino. Durante muitos anos as raízes não as deixaram planar no sentimento.

 

Mas hoje... hoje as amarras do tempo soltaram-se e as árvores voaram.


Se um dia as palavras mergulhassem iriam ao azul mais profundo só para escrever o teu nome. Cada movimento na doce levitação do mar seria um pairar de vontades e sentimentos. Durante muitos anos os oceanos estiveram secos de revolta.

 

Mas hoje... hoje os peixes abraçaram-se de alegria e as palavras mergulharam.


Se um dia os sentimentos dessem as mãos uniriam todos os adormeceres num único acordar. Saltariam barreiras de confiança apertando com força os dedos da partilha. Durante muitos anos as luvas do destino deixaram as mãos em bolsos diferentes.

 

Mas hoje... hoje as veias palpitaram de emoção e os sentimentos deram as mãos.


Se um dia a vontade nos juntasse à volta de uma mesa e a seis olhos planeássemos o futuro de boca seca, as páginas seguintes seriam de mudança. Daríamos flores de esperança em papel de assunto pardo. Durante muitos anos o jardim que nos une não foi regado.

 

Mas hoje... hoje as nossas vidas foram regadas e a vontade juntou-nos.

 

 

Hoje, foi o melhor ontem com que alguma vez o meu amanhã conseguiu sonhar!

 

 

P.S. - Para ti, por todo o tempo que tivemos de esperar para que este dia fosse hoje.

Bilhetado por Brunorix às 01:51

17
Dez 09
Todos os inícios têm um começo e ontem começou um deles. Na casa de um coleccionador, 11 bravos sonhadores lançaram para a fogueira da opinião pública as achas da sua criatividade. Sem credo nem idade, todos se juntaram num só.

Um onze avos do meu sonho foi disparado na direcção de um qualquer alcançar distante, cheio de esperança no amanhã da escrita. Os momentos que nos marcam são preenchidos pelas presenças e pelo apoio dos que se demonstram. Obrigado a todos por tudo.




Algum interessado na leitura poderá adquirir um exemplar (bem como da agenda) aqui pelo mail do blog (envio à cobrança) ou directamente na Companhia do Eu, a verdadeira responsável pela concretização de todos estes sonhos.

Deste que s`assina,

Miguel Aragonez
(o “homem” da página 135)



P.S. - O livro irá constar da próxima votação do Clube.


Bilhetado por Brunorix às 11:09

09
Dez 09


P.S. - ... e o Miguel Aragonez também!

Bilhetado por Brunorix às 13:12

02
Dez 09
O sonho acordou a meio do fim pouco depois de ter iniciado. Espreguiçou o espanto e olhou para o relógio: faltavam poucos minutos para depois. Decidiu dormir mais um pouco. Lá fora, a chuva despedia-se da noite e abraçava os primeiros raios da manhã.

Algumas portas ao lado a doença tinha começado a acabar. Fazia as malas dos últimos dias e preparava-se para mudar de corpo. Tinha cumprido a sua missão ali, fazendo o possível por deixar bem vincada a tosse, a febre e as dores de tudo e mais alguma coisa.

No andar de baixo, a partilha dava as mãos ao destino e reforçava os laços de vida com um sincero amo-te. Tinham passado a noite enroscados no sofá a beber chá de alegria e a ver filmes de futuro com um sorriso nos lábios. Para aquecer o momento tinham-se tapado com a manta da tranquilidade enquanto se divertiam a baralhar pernas.

A satisfação pessoal, que morava na rua de trás, vestia os mais pequenos projectos de vida (a esperança, o amor e a certeza) e preparava as lancheiras da escola, revendo mentalmente todos os passos da rotina diária. Era fácil esquecer alguma coisa, afinal sempre eram 3 filhos e havia muito para preparar.

Na rua tudo começava a mexer: o tem que ser já colocava as frutas e legumes, tudo fresquinho, na direcção de quem passa; o outro dia alinhava as tesouras e os pentes esperando o primeiro cabelo que se viesse guilhotinar; o mais cedinho escrevia a ementa do dia enquanto arregaçava as mangas do pequeno-almoço que tinha que se tornar grande; a vida igual abria as persianas da montra depois de ter contado todos os botões, fechos, fios e sedas; o representante acordava o representado para que atendesse os fiéis que passassem as portas da necessidade em busca das primeiras respostas do dia; o frete dos outros varria os restos da noite alheia e baldeava a consternação mútua com água renovada de esperança.

Enquanto os mortos se conformavam os vivos não. Por todo o lado, tudo seguia o caminho de sempre enquanto todos se levantavam da profundeza do descanso para dar início a mais um dia de tanto.

Do alto, uma Estrelinha (a descansar do mar) observava com alegria a dádiva do dia que nascia lá em baixo. Satisfeita, afastou as nuvens para o lado e levantou-se para ir acordar o sol. Estava na hora.



Bilhetado por Brunorix às 12:45

04
Nov 09
António Ébano e Maria Mármore estavam de costas voltadas para o entendimento. Faziam do equívoco o desafinar da melodia e por muito que se apertassem as cordas, nada soava a tranquilidade. O destino músico bem se esforçava por seguir a pauta da vida mas a razão não resistia ao compasso da discórdia.

As teclas brancas olhavam de soslaio para as teclas pretas. O clima de suspeição deixava cair uma névoa de tristeza e rancor que não permitia ver sorrisos por trás da cortina. Eles até existiam. No entanto, estavam pintados de orgulho. Os acordares eram avessos e os adormeceres angustiados. Ambos choravam por dentro mas no silêncio da dúvida.

Contra explanação, um milagre aproximou-se do piano exactamente um ano depois do seu último concerto. Mandou as pautas da discórdia para o chão e substituiu-as pelo andamento futuro. Sentou-se, aqueceu bem as mãos e começou a tocar.




Uma doce melodia de entendimento encheu o ar do momento enquanto António e Maria subiam e desciam comandados por uma vontade que não percebiam. Todas as teclas se uniam na razão de uma música de sentimento, pautando cada nota pelo aprimorar do mais puro dos sons. Os suaves compassos do fundamento preenchiam os espaços do silêncio com colcheias de tudo o que sempre foi.

Finda a música, o milagre (do Amor) levantou-se, recolheu as suas folhas e partiu para outros pianos. António e Maria abraçaram-se de emoção e perdoaram os anteriores silêncios cantando em uníssono. Na escada do futuro selaram a conquista com um beijo. E que beijo!


30
Out 09
Traste 1

Já só conseguia ter um olho aberto e mesmo esse só dava imagens desfocadas. Entre a neblina da indecisão parecia-me ver tudo castanho-brilhante. Algumas indagações mentais mais tarde, percebi que tinha a cabeça sobre o balcão. Estava de volta ao bar. Decidido a combater a inércia abri o outro olho.

Agora via tudo em amarelo-torrado com oscilações. Estava a ver através do copo de uísque. Numa tristeza sorridente pensei que não deveria ser possível descer mais baixo na escala da humilhação (ainda bem que estava encostado ao balcão!) e chamei a mim todos os sentidos necessários à operação levantar de cabeça: equilíbrio, orientação, força e força de vontade. Cinco minutos depois a operação revestia-se de sucesso. Embora um bocadinho oscilante, a cabeça encontrava-se na verticalidade possível.

Sobre o balcão estavam sete copos cuidadosamente alinhados. Em comum tinham o facto de estarem vazios. O oitavo, o que ainda tinha líquido, estava mais próximo de mim por dois motivos: primeiro era o único que estava ao alcance da mão sem ter que esticar o braço, segundo eu já tinha olhado através dele e por isso conhecia o seu interior como ninguém.

Entretido com os meus pensamentos tão pouco sóbrios nem reparei nos acontecimentos seguintes.


Traste 2

Desapertei o botão. A porcaria da gravata que não servira para nada, já me começava a apertar os nervos. Decidi soltá-los. Que bons estes amendoins. – Dê-me outra tacinha, por favor.

Um gole pequenino que isto tem que durar. Venho a este bar todos os dias, bebo um uísque com dois dedos de água e uma pedrinha de gelo todos os dias (com muitos amendoins!), sento-me no mesmo banco todos os dias, encosto-me ao balcão todos os dias. Todos os dias trago um fato diferente, todos os dias venho de uma entrevista diferente. Que merda de rotina. Continuo desempregado! – Outra tacinha, por favor. – São mesmo bons.

Cada carta da (in)segurança social aumenta-me as pulsações do desespero e a sede! Não fosse a minha escassa liquidez e o líquido aumentava. Aqui devem pensar que sou forreta. Se eles soubessem que não tenho mais… mas os amendoins são mesmo, mesmo bons.

- Outra tacinha, por favor.



Traste 3

Nem o decote me valeu, aposto que o editor é gay. Já revi o romance três vezes e mesmo assim ele diz que ainda não está bem. É sempre a mesma conversa de que eu tinha prometido tanto com o meu conto das Bicicletas 5 e que era uma romancista nata e blá, blá, blá…

- Um uísque com Água Castelo, por favor.

Que estúpido! O que é que ele percebe de romances?! Eu merecia publicar e ainda não consegui mais que um conto neste livro: Bicicletas para Memórias & Invenções 5 - Colectânea de contos dos alunos da Companhia do Eu. No entanto, anda sempre comigo. Não consigo é abri-lo mais. Fica pousado sobre o balcão.

- Um uísque com Água Castelo, por favor.

O gordo já está outra vez a deixar cair a cabeça e o desengravatado não deve ter conseguido arranjar emprego ainda. Que nojo! Já não posso ver as mesmas caras todos os dias. Na verdade, não sei o que venho aqui fazer todos os dias.

- Um…
- … uísque com Água Castelo?
- Obrigada.


Cão 4

Fechei a porta com o estrondo habitual de quem foge da chuva. Sacudi a gabardine, pendurei-a. Sacudi o chapéu, deixei-o no cesto. Lá dentro o tom castanho-fumo escondia os bêbados do costume: o meu outro Eu já deixava cair a cabeça no balcão. Tinha sido o primeiro a chegar e era pela linha temporal o mais bêbado.

O Personagem 1 que devia ter chegado pouco depois, mastigava os amendoins com a boca toda. Como era a única coisa que não se pagava, era o que repetia mais vezes. O uísque devia ser o primeiro, a julgar pela habitual característica forreta. Cada dia um fato diferente e a esta hora sempre com a gravata desapertada de frustração. Não se desse o caso de ser meu irmão e nem sequer me preocupava em dirigir-lhe o olhar. Cumprimentei-o com a indiferença que pautou toda a nossa vida.

Ao seu lado, a Personagem 2, terceira da ordem de chegada trazia o seu livro do costume: Bicicletas 5. Nunca o lia, mas adorava usá-lo como base para o copo. Já era a terceira vez que eu lhe recusava o romance, mas a verdade é que a gaja não escreve nada e não percebe que só a recebo por causa dos decotes. Não sei porque é que ela insiste em frequentar o mesmo bar que eu. Deve ser para me fulminar com aquele olhar de fundo de balcão, via uísque com água castelo.

Aproximei-me do meu outro Eu, o que me era mais familiar pelo narciso entendimento, e perguntei-lhe o que é que eu ia beber.

- Um uísque duplo sem gelo. – Respondeu ele virado para o barman em tom de pedido e antes de voltar a deixar cair a cabeça.

Bilhetado por Brunorix às 19:00

23
Out 09
Preâmbulo: Embora não obrigatório, é fundamental envolver a escrita com esta música.



Sentiu a madeira fria nas pernas. Esticou o arco com o número de voltas certas. Pôs resina. O primeiro contacto do arco com as cordas produziu o mais melodioso dos arrepios. A vibração das cordas tornava o momento excitante. O corpo do violoncelo, encostado ao seu tornava-os num complemento. Ambos nus.

Nota após nota o seu calor aumentava num tom de prazer aveludado. As pernas abertas, encaixadas à volta do instrumento deixavam sentir uma suave brisa no seu interior cada vez mais húmido. Os olhos sempre fechados ouviam em uníssono o abraço daquela música desconcertante. O arco bailava para trás e para a frente numa dança de volúpia musical, ora devagar, ora depressa, Pianíssimo

Alguns compassos depois o violoncelo beijava-lhe o seio cada vez mais rijo de tanto tocar. O arco não parava e o instrumento também não. O corpo de madeira, agora não tanto, agarrava-se ao seu tronco impecavelmente erecto na mais clássica e correcta das posições. As pernas apertavam cada vez mais o violoncelo mulher enquanto a vibração das cordas se deixava embalar num beijo de línguas compassadas.

As folhas da pauta viravam com vida própria enquanto os dedos do violoncelo deslizavam pelo interior das suas coxas na direcção de um orgasmo que se adivinhava no virar da próxima página. O arco seguia já quase sem resina numa incansável massagem de erotismo barroco. Os seus seios pediam beijos ao mesmo tempo que os dedos seguiam ao ritmo do arco. Suores quentes e frios misturavam-se em colcheias de prazer. A página virou.

A partitura exaltava o momento e pedia o último compasso Prestíssimo. O arco exausto suava na luxúria do andamento que se atingia. Beijos dedos e outras notas corriam contra o inevitável. O tempo não esticava e os corpos atingiam o auge. Soou a última nota de uma corda agora vocal: o gemido foi tão intenso que o livro de pautas se fechou. Um orgasmo em apoteose deixava manchada a cadeira da verdade. A música terminara despedindo-se numa ofegante respiração quase silenciosa.

Uma batida agitada na porta acordou o momento:

- Maria! Estás a ensaiar há duas horas, não é melhor fazeres uma pausa filha?



Bilhetado por Brunorix às 13:12

14
Out 09
O Valor sentou-se na Dúvida e pensou quanto valeria tudo o que vale qualquer coisa. Qual não foi o seu espanto, quando a pensamento tanto, se apercebeu que no valor tudo poisa. Levantou-se da Dúvida (que entretanto já se queixava do peso) e sentou-se na Convicção onde um pensamento mais teso já lhe fazia comichão.

Deixou-se comichar valorizando o Sentimento, até que a dado momento, sentiu prazer. Não daquele de sentir, mas daquele de se ver. Igualmente bom de cheirar, sorriu no que estava para vir e no que acabava de chegar. Seria o valor do sentimento?

Dois assentamentos mais abaixo, valorizou o Dinheiro. Que cheiro! Empestado de manipulação, não dizia que sim, mas também não dizia que não. Sentiu o ódio e a felicidade unidos na mesma puberdade. Que valor seria aquele, na verdade?

Sentado agora no valor de cada Nota, sentiu-se primeiro idiota e depois, cuspiu na derrota. Seria musical? Talvez fosse classificação, embora essa nem sempre tenha razão. Deixou-se atribuir, em jeito de pauta e musicou o plural do seu sentir: 20 valores!

Cansado de tanto se sentar o Valor levantou-se no destino e concluiu, para acabar, que tudo o que vale não tem tino e que o nada vale o que quisermos dar. Será que isto vale alguma coisa?




01
Out 09
Premissas: Alguém está a cortar algo com uma faca (carne, peixe, fruta ou legumes).
Exercício 1: Descrever a cena dando uma noção de irritação da pessoa.
Exercício 2: Descrever a mesma cena como se estivesse a fazer amor.
Tempo: 5 minutos cada.


Exercício 1

O primeiro golpe acertou no dedo, o segundo na cenoura e o terceiro no tomate. O quarto, que já foi com o cabo, esborrachou em vez de cortar. A vítima foi o alho francês.

Recomeçou. Desta vez não foi ao dedo, mas não deu hipótese à cenoura e ao tomate. Quanto ao alho francês, esse já estava morto. Repetiu tudo incluindo o dedo. Imbuído de espírito cortante, cortou tudo: cenoura, tomate, dedo. Cenoura, tomate, cenoura. Tomate, dedo, tomate, cenoura, dedo, dedo.

A faca saltava descontroladamente de um vegetal para outro. O tom avermelhado dos vegetais sobre a mesa indicava que várias vezes voltara aos dedos.




Exercício 2

O primeiro golpe acertou no dedo. Foi o primeiro arrepio. O segundo acertou na cenoura, as pernas tremeram. O terceiro acertou no tomate com um lascivo poder de corte. O quarto que foi mais esfregado que cortado, esborrachou um erecto alho francês.

Recomeçou. Desta vez não foi ao dedo mas penetrou a faca na cenoura e no tomate. E penetrou de novo. A cenoura e o tomate pediam mais. Agora com as duas mãos.

- Espeta-me outra! – Gritou a cenoura.
- Não te esqueças de mim… – Gemeu o tomate.

Mãos, cenoura, tomate e facas dançavam descontroladamente. Surgiu sangue sobre a mesa, um deles ficara mais experiente. Afinal não. Tinha-se cortado.

Bilhetado por Brunorix às 13:27

25
Set 09

Desviados os caminhos da escrita, procuro na base do pensamento o tempo. O tempo que foge às letras e que acumula vontades em página vazias de emoção. O tempo que fecha a torneira da inspiração deixando apenas um gotejar de esperança. O tempo que cobre as janelas da alma enquanto um raio de sol insiste em espreitar por trás da oportunidade. O tempo que não rega o jardim dos livros e que deixa secar as folhas da palavra.

Já é tempo de encontrar esse tempo.

Desviados os caminhos da escrita, procuro na base do pensamento a dúvida. A dúvida que me assola o lápis em cada linha. A dúvida que não me deixa mergulhar no futuro. Essa mesma dúvida que faz gritar o silêncio ausente em cada poema deixando surdos os entendidos. A dúvida que chora na apatia do momento.

Não há dúvida que a dúvida está desfeita.

Desviados os caminhos da escrita, procuro na base do pensamento a paixão. A paixão que faz nascer a palavra pensada, que a faz viver escrita e que a mata em suaves golpes de leitura. A paixão que entorna o copo cheio do amor por cada livro. A paixão da doce partilha caramelizada em cada sonho salgado.

A paixão pela paixão está viva.

Desviados os caminhos da escrita, procuro na base do pensamento a ideia. Finalmente arranjei tempo para que não houvesse dúvida que a paixão pela ideia estará sempre por aqui.

Bilhetado por Brunorix às 10:51

17
Jul 09
Um Conto sem ponto e um Verso perverso encontraram-se na esquina de um livro.

Perguntava o Conto pela vida do Verso, mas como não tinha ponto, nem sequer entoava questão. O outro que era torto e ainda por cima perverso, nem tentava perceber nem ajudava de antemão.

Dobradas, a contenda e a esquina seguiram na cavaqueira da vida. Sempre com frases não terminadas, outras ideias maltratadas e uma estrada mais curta que comprida. Amigaram-se do conhecimento e abraçaram as palpitações da discórdia. Sempre na paródia.



Rábulas feitas entre ruas mais estreitas, saltaram capítulos de concordância, com notas de menor importância. Assuntos lá de baixo, assim do pé da página que o importante está mais à mão e no resto nem me encaixo. Mas também não digo que não.

Chegaram depois à partida desenhando argumento perverso, sem verso e encheram de pontos todos os contos que encontraram no bem dito regresso. Sentados na mesma esquina primeira, combinaram que aquele livro à maneira seria para todos o inverso.

O mesmo será dizer, que o conto que se está a ler, leva ponto e leva verso mas não é de todo perverso.

É apenas fraquinho, tadinho…

Bilhetado por Brunorix às 18:43

07
Jul 09
Dois gelados secretos, um lambido e um trincado, estendiam-se numa esplanada de gelo ali prós lados do Pólo Norte. Enquanto um lia o jornal, o lambido, o outro falava ao telefone com um primo, o chupado.

Gozavam umas, merecidas, férias de Inverno com muito descanso e muita diversão evitando conversas muito picantes para não se derreterem de riso. As manhãs eram passadas a esplanadar ao gelo e à tarde dividiam-se entre massagens a frio e sessões de congelador para tonificar a pele.




Tudo corria na mais tranquila das temperaturas, até receberem um telefonema da Arca Central Dos Congelados (ACDC) a dizer que tinham que interromper as férias e regressar com urgência ao quartel-general. Um arrepio de calor percorreu-lhes o pauzinho de madeira e a indignação estragou-lhes o corante. No chão, dois pingos de suor raivoso (um laranja e um ananás) ficavam para trás.

Vestiram dois pacotes à pressa e apanharam o primeiro carro frigorífico que saía nessa tarde. Como a viagem demorava cerca de 4 horas ligaram o i-phrio à internet para consultarem o g-mail (mail dos gelados) para saber se as últimas notícias fresquinhas ajudavam a perceber de onde viria tamanha urgência. Deu em nada.

Assim que chegaram à Central, galgaram escadas de ansiedade e foram directos à sala de reuniões, como lhes tinha sido indicado. Abriram a porta com a força da indignação que tinham e entraram no espanto:

- Agente Laranja, Agente Ananás, sentem-se! O assunto é urgente!

Gelaram, ainda mais, perante a voz suprema e mais fria da hierarquia. À sua frente estava “apenas” o gelado mor, aquele que nunca aparecia que nunca se deixava derreter, nem lamber, nem trincar. O único sabor que ninguém conhecia: Cornetius Epámaxis, o Presidente da ACDC!

Sentaram-se na sua pose mais profissional levantando o sobrolho adocicado e ajeitaram subtilmente as armas que traziam por baixo do pacote. Encheram o peito de ar e esperaram o aquecimento que aí vinha.

- Estamos a ser vítimas de espionagem industrial, a CIA (Capitão Iglo & Associados) infiltrou um agente nas nossas instalações! Um Douradinho! – Exclamou Cornetius enquanto esmurrava a mesa de raiva fria.

- Isso nem é problema! O último Douradinho com que me cruzei, nem chegou a ser mastigado! – Disse Laranja afagando a coronha da sua Magnum 44 Classic (6 tiros avelã com coronha baunilha pérola).

- Cuidado… as coisas não são bem o que eram. Estamos na era glaciar e estes mega Douradinhos agora são XXL!



- XXL, fritos ou por desembalar já liquidámos pior! – Acrescentou Ananás endireitando-se de convicção na cadeira. – Como quer que acabemos com ele? À garfada?

- Vamos com calma! Primeiro temos que sacar o que ele já sabe sobre a foto secreta da Eva Longoria que vamos usar em 2010. Parece que a querem roubar para colocar nas novas caixas de pastéis de bacalhau. A imagem do velho já não vende nada!

- Sacanas… - Grunhiu Laranja raivoso – um tiro de avelã no meio dos olhos e nem com arroz os queriam!


(continua)
Bilhetado por Brunorix às 18:49

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