Escritas do fundo do mar

18
Mar 09
Cheirava-me sempre a dores nas costas. O meu Avô pagava-nos a 25 escudos o balde e uma semana de cheiro dobrado rendia aí uns 4 ou 5 baldes com brincadeira à mistura. Coisa pouca para tanta dor e tanto cheiro, que por sinal ficava nas mãos e no resto das férias. O calor Ribatejano no Verão da memória, não ajudava a que desaparecesse.

Algumas notas perfumadas de cansaço, no dia de receber ajudavam a esquecer o cheiro pegajoso e frutado que se entranhava nos lombos vergados. Como a vontade era pouca, um Verão de cheiro intenso e dorido, rendia 150 a 200 escudos. Enjoei o rendimento.

Pelo sim, pelo não hoje em dia não como figos… é que ainda me doem os cheiros das costas.



02
Mar 09
Foi uma vez uma estrela, que já era mas ainda não tinha sido, do mar. Estava no fundo de um oceano de tempestades, mas mantinha sempre a mesma tranquilidade singela de um repouso sereno, mas expectante na procura.

Certo dia, que foi certo pelo destino, decidiu mover-se de uma rocha para outra para procurar um melhor abrigo, das intempéries de vida e do pouco alimento situacional da sua posição. Esta movimentação, que pela curta distância aparentava ser segura, foi interceptada por um Tubarão de Sesimbra que vagueava nas redondezas em busca de alimento.



Aparentemente assustada, a Estrela-do-mar tentou ficar muito quietinha para que o Tubarão não a visse e seguisse o seu caminho. Só que este tubarão tinha umas lentes (com desconto igual à idade) e topou logo aquela estrelinha assustadiça. Aproximou-se de dentes afiados e… não fez absolutamente nada! Embasbacou-se, emparvalhou-se e deixou-se ficar de boca aberta.

Seria um tubarão temático? Pensou ela, desiludida por não ter sido comida. Não satisfeita com a desfeita, afinal tinha-se movimentado no seu melhor vestido Carmim Fundo, decidiu enviar flores com chupas ao Tubarão para que ele não se esquecesse da sua atitude tão pouco condizente com um macho da sua estirpe aquática.

Águas passadas sobre a recepção das mesmas (flores com chupas), o Tubarão indaga por mais movimentações da Estrela-do-mar e numa tentativa de salvar a honra tubaronense envia uma mensagem por búzio electrónico a agradecer as mesmas (flores com chupas). A partir daí várias mensagens se trocaram (por búzio e telefone de concha) em direcção a outros mares nunca dantes mergulhados.

No entanto, o Tubarão nunca mais se decidia a comer a Estrela-do-mar (o que a deixava profundamente, de profundidade, furiosa) e esta não foi de modas (até porque sempre vestiu atitudes diferentes): voltou à carga com uns deliciosos biscoitos em formato de gengibre do mar, que deixaram o Tubarão profundamente extasiado, especialmente da barriga.

Algumas trocas depois e um doce telegrama via Express-Fish, decidiram encontrar-se para partilhar um belo bife (de atum) com ovas a cavalo e molho portugália aquática. Vários encontros se seguiram até que um dia a Estrela-do-mar convida o Tubarão para conhecer a sua rocha da alta e quando finalmente o Tubarão se preparava para a comer (à Estrela) ela esfrega o seu cavalo-marinho pela paredes da garagem da rocha, numa atitude de demonstração de poder profundamente feminino, isto é, contraditório.

Deliciado com aquela demonstração, o Tubarão entusiasmou-se e começou a viajar para Sul com frequência para estar com a Estrela-do-mar na sua rocha da praia. Às vezes era ela que viajava para Norte.

Decidiram parar com as viagens e juntaram-se na mesma rocha onde ainda hoje vivem. A Estrela-do-mar atubaronou-se e o Tubarão tornou-se estrelado. Não se percebeu bem como se fundiram, mas alguma coisa aconteceu e os dois estão vivos e felizes.




Adenda Infantil - Vá lá alguém perceber o moral desta história. Crianças: não digam aos vossos pais que eles se comem porque não há nada por escrito.

Adenda Adulta – É claro que ninguém come ninguém e podem contar esta inocente história aos vossos filhos. Afinal é só amor entre espécies diferentes.

Adenda EspecialParabéns!

Adenda Temporal – Esta história foi ontem, mas a validade é eterna.


11
Fev 09
MAÇÃS SALGADAS #2

Os meus dedos aterrorizados cravaram-se na maçã indiferente, com a força do sumo que já escorria. Vinda do fundo do medo, uma onda de energia fez-me correr como nunca na direcção do muro e do respectivo salto salvador.

O dono do berro, não se deu ao trabalho de correr atrás de mim, mas agarrou na famosa espingarda (sempre pensei que ela não existia) e apontou-a num gesto claramente repetido vezes sem conta, enquanto eu corria com a minha experiência cinematográfica, isto é, em ziguezague.

Ouvi uma primeira saraivada salgada, mas parecia estar tudo bem pois não senti nada. Ainda estava a correr e o muro estava próximo. Só falta o salto… saltei!

Do lado de lá da aterragem, a multidão de olhos curiosos, fazia perguntas sem sequer falar. Ainda bem que as maçãs cheiram, pois aquela massa disforme e esmagada que eu ainda apertava, parecia tudo menos uma maçã. Prova superada!

De volta à sala de aula não se falava de outra coisa, eu tinha finalmente marcado pontos e aquele dia era meu. Estava inchado de orgulho e não cabia no contentamento do meu casaco. Assim que me sentei levantei-me logo, um calor doloroso acabara de atacar uma zona do meu corpo que devia ser ali para os lados do fundo do rabo, ou do cimo da coxa, não sei bem. Pensei que me devia ter arranhado no salto e sentei-me mais devagar.

Os cinquenta minutos de aula seguintes foram dolorosos e, apenas refrescados, pelo meio, por alguns olhares de cumplicidade e admiração. No intervalo arrastei a minha dor à casa de banho e na intimidade do cubículo sanital, baixei as calças para uma inspecção mais minuciosa. O resultado da minha pesquisa tinha revelado, não só um buraco nas calças, mas outro na tal zona do meu corpo. Eu tinha levado um tiro de sal!

Anos passados, muros e maçãs também, e uma pequena marca ainda hoje me lembra o preço da aventura. Podia ter corrido mal, mas não correu e, sobretudo, ninguém soube da marca infligida. Para a história (a minha) fica a memória de uma fase da vida em que todos os dias nos púnhamos à prova e onde o perigo inconsciente espreitava… atrás das árvores do crescimento.

Ainda gosto de saltar muros, mas prefiro maçãs sem sal.



Bilhetado por Brunorix às 16:10

04
Fev 09
MAÇÃS SALGADAS #1

Cheirava a fruta e a medo. A separar, um muro de pedra e areia que se ia desfazendo com o passar dos anos para o lado de lá e dos corajosos em sentido inverso. Sempre foi o grande baptismo daquela escola: conseguir trazer uma maçã para provar a ida. O sabor? Esse podia ser deitado fora.

Quarta-feira de aventuras. Já andava naquela escola há 3 meses e ainda não tinha saltado o muro. Já não conseguia fugir ao ritual de aceitação. Tinha chegado o meu dia.

Regras: saltar o muro que ficava nas traseiras da escola e voltar com uma maçã.

Primeira condicionante: do lado de lá do medo havia uma quinta com muitas árvores.

Segunda condicionante: as de fruta eram as mais longe do muro e as mais perto da casa.

Terceira condicionante: conseguir voltar são e salvo porque, segundo constava, o maluco do velho que lá vivia disparava sobre os miúdos que lá entravam.

Quarta condicionante: disparava mesmo. Embora fossem tiros de sal, faziam uma ferida dolorosa e eram o símbolo da derrota.




O ritual exigia que as regras fossem ditas em voz alta momentos antes da partida. Nesse dia nem as consegui ouvir e deixei que fossem abafadas pelos nervos. Os sons iam para o estômago e na cabeça só ouvia o coração. Já tinha as mãos encostadas à inevitável escalada e ainda hesitava. Os olhares de todos convenceram-me.

Passar para o outro lado era a parte fácil pela execução, mas difícil pelo que se seguia. Quando aterrei no chão que me esperava, estava a suar. As pernas tremiam e o corpo colava-se ao muro. As árvores eram horrivelmente bonitas e assustadoramente convidativas. Caminhei na direcção do cheiro, mas parecia nunca mais lá chegar. A única árvore que tinha maçãs, ficava mesmo junto à janela da casa do velho.

Dois troncos antes do objectivo fruto, parei para respensar (que é uma espécie de respiração do pensamento), acalmei as pulsações e comecei a correr com a determinação mais assustada que tinha. Agarrei a maçã com a pressa da alegria e no regresso vitorioso deixei-a cair.

Voltei atrás para cumprir o destino honroso e no momento em que apanhei o frutado prémio, ouvi um berro que me aqueceu o pânico…


(continua)

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