Escritas do fundo do mar

26
Mai 10

P.P. (Personagem Principal), seguia pela estrada do conto em direcção ao sol que se punha por escrita imposta. Guiava com a tranquilidade própria de quem segue um caminho orientado e acelerava o suficiente para lá chegar. Nem muito, nem pouco, apenas o suficiente.

 

O seu carro de confiança era o mesmo do ano anterior, o que lhe deixava espaço para qualquer manobra. Sabia de cor o número de voltas que precisava de dar ao volante se quisesse escrever um romance, ou a força com que travar em caso de choque literário, ou até o buzinar enfurecido em caso de engarrafamento de escritor.

 

Homem e máquina eram um só respirar que fluía pelas linhas da palavra escrita. O rumo não podia ser mais tranquilo, nem mais literário.

 

De repente, um estouro quase jornalístico fez perceber que rebentara um pneu. Guinou umas palavras para a esquerda, travou outras para a direita e a custo, e susto, conseguiu encostar na berma certa.

 

Saiu e verificou com estupefacção o estado degradado do pneu direito que agora era torto. Por desígnios de um crítico qualquer avistou uma área de serviço literário a 500m. Rastejou o carro para lá e pediu ajuda a um mecânico de letras…

 

- Eh lá! Esse pneu já não escreve nem mais uma linha!

 

- Pois é… já viu o meu furo?!

 

- Não se preocupe que veio ao sítio certo. Como prenda pela sua extraordinária condução literária, tem direito a uma edição grátis do seu próximo pneu!

 

- Nem pensar! Faço questão de ser eu a escrever o remendo!

 

- Mas não é um remendo, é uma edição nova. Além disso não pode recusar, faz parte do seu mérito!

 

- Não, não. Isto não passa de um exercício e se insistir deixo simplesmente de escrever.

 

- Mas assim a confiança do carro…

 

- ...

 

Bilhetado por Brunorix às 18:34

11
Mar 10

 Recebido:

 

1 - Uma alface assassina um homem.

2 - Causar efeito de perdão no leitor.

3 - 15 Minutos (revisto).

 

 

Devolvido:

 

Querida Alfácia,

 

É verdade. Tudo o que tens ouvido sobre mim é verdade. Fui eu que o matei e se fosse hoje voltava a matar.

 

Eu não podia ficar plantado à espera que as autoridades fizessem o que lhes compete. Sabes bem como é a justiça na nossa Quinta. A maneira bárbara com que ele te pisou as folhas, as dentadas nojentas que deu no Alfacinho e na Alfacinha. Eu não podia meu amor, percebes? Os nossos filhos morreram no prato enquanto nós sangrávamos na saladeira! Ainda hoje mexo mal o caule esquerdo. E tu minha Alfácia? Cheia de manchas castanhas e a cheirar mal enquanto as lágrimas de mãe te corriam pelas folhas do desgosto… foi demais para mim.

 

Ainda hoje penso que foi a mão de Deus que atirou aqueles dois garfos na direcção da testa dele, porque eu sinceramente não sei onde fui buscar forças para o fazer. Tenho recebido cartas de todos os legumes da Quinta a felicitar-me pela coragem e por nos ter libertado daquele malvado. Parece que a paz reina agora por aí.

 

Espero que compreendas minha Alfácia. Eu tinha que cumprir o meu papel de pai e de marido. É a última vez que te escrevo, pois estou na bancada da morte. Fui condenado à cozedura por panela de pressão. O meu corpo vai-se desfazer na água a ferver e passarei a ser um qualquer puré verde. No entanto, não me arrependo! Faria tudo de novo.

 

O Padre saiu daqui agora mesmo e até a última refeição dispensei. O meu último e único desejo é saber que me compreendes e que me perdoas.

 

Com todo o amor,

Alfácio

 

 

Bilhetado por Brunorix às 13:42

30
Out 09
Traste 1

Já só conseguia ter um olho aberto e mesmo esse só dava imagens desfocadas. Entre a neblina da indecisão parecia-me ver tudo castanho-brilhante. Algumas indagações mentais mais tarde, percebi que tinha a cabeça sobre o balcão. Estava de volta ao bar. Decidido a combater a inércia abri o outro olho.

Agora via tudo em amarelo-torrado com oscilações. Estava a ver através do copo de uísque. Numa tristeza sorridente pensei que não deveria ser possível descer mais baixo na escala da humilhação (ainda bem que estava encostado ao balcão!) e chamei a mim todos os sentidos necessários à operação levantar de cabeça: equilíbrio, orientação, força e força de vontade. Cinco minutos depois a operação revestia-se de sucesso. Embora um bocadinho oscilante, a cabeça encontrava-se na verticalidade possível.

Sobre o balcão estavam sete copos cuidadosamente alinhados. Em comum tinham o facto de estarem vazios. O oitavo, o que ainda tinha líquido, estava mais próximo de mim por dois motivos: primeiro era o único que estava ao alcance da mão sem ter que esticar o braço, segundo eu já tinha olhado através dele e por isso conhecia o seu interior como ninguém.

Entretido com os meus pensamentos tão pouco sóbrios nem reparei nos acontecimentos seguintes.


Traste 2

Desapertei o botão. A porcaria da gravata que não servira para nada, já me começava a apertar os nervos. Decidi soltá-los. Que bons estes amendoins. – Dê-me outra tacinha, por favor.

Um gole pequenino que isto tem que durar. Venho a este bar todos os dias, bebo um uísque com dois dedos de água e uma pedrinha de gelo todos os dias (com muitos amendoins!), sento-me no mesmo banco todos os dias, encosto-me ao balcão todos os dias. Todos os dias trago um fato diferente, todos os dias venho de uma entrevista diferente. Que merda de rotina. Continuo desempregado! – Outra tacinha, por favor. – São mesmo bons.

Cada carta da (in)segurança social aumenta-me as pulsações do desespero e a sede! Não fosse a minha escassa liquidez e o líquido aumentava. Aqui devem pensar que sou forreta. Se eles soubessem que não tenho mais… mas os amendoins são mesmo, mesmo bons.

- Outra tacinha, por favor.



Traste 3

Nem o decote me valeu, aposto que o editor é gay. Já revi o romance três vezes e mesmo assim ele diz que ainda não está bem. É sempre a mesma conversa de que eu tinha prometido tanto com o meu conto das Bicicletas 5 e que era uma romancista nata e blá, blá, blá…

- Um uísque com Água Castelo, por favor.

Que estúpido! O que é que ele percebe de romances?! Eu merecia publicar e ainda não consegui mais que um conto neste livro: Bicicletas para Memórias & Invenções 5 - Colectânea de contos dos alunos da Companhia do Eu. No entanto, anda sempre comigo. Não consigo é abri-lo mais. Fica pousado sobre o balcão.

- Um uísque com Água Castelo, por favor.

O gordo já está outra vez a deixar cair a cabeça e o desengravatado não deve ter conseguido arranjar emprego ainda. Que nojo! Já não posso ver as mesmas caras todos os dias. Na verdade, não sei o que venho aqui fazer todos os dias.

- Um…
- … uísque com Água Castelo?
- Obrigada.


Cão 4

Fechei a porta com o estrondo habitual de quem foge da chuva. Sacudi a gabardine, pendurei-a. Sacudi o chapéu, deixei-o no cesto. Lá dentro o tom castanho-fumo escondia os bêbados do costume: o meu outro Eu já deixava cair a cabeça no balcão. Tinha sido o primeiro a chegar e era pela linha temporal o mais bêbado.

O Personagem 1 que devia ter chegado pouco depois, mastigava os amendoins com a boca toda. Como era a única coisa que não se pagava, era o que repetia mais vezes. O uísque devia ser o primeiro, a julgar pela habitual característica forreta. Cada dia um fato diferente e a esta hora sempre com a gravata desapertada de frustração. Não se desse o caso de ser meu irmão e nem sequer me preocupava em dirigir-lhe o olhar. Cumprimentei-o com a indiferença que pautou toda a nossa vida.

Ao seu lado, a Personagem 2, terceira da ordem de chegada trazia o seu livro do costume: Bicicletas 5. Nunca o lia, mas adorava usá-lo como base para o copo. Já era a terceira vez que eu lhe recusava o romance, mas a verdade é que a gaja não escreve nada e não percebe que só a recebo por causa dos decotes. Não sei porque é que ela insiste em frequentar o mesmo bar que eu. Deve ser para me fulminar com aquele olhar de fundo de balcão, via uísque com água castelo.

Aproximei-me do meu outro Eu, o que me era mais familiar pelo narciso entendimento, e perguntei-lhe o que é que eu ia beber.

- Um uísque duplo sem gelo. – Respondeu ele virado para o barman em tom de pedido e antes de voltar a deixar cair a cabeça.

Bilhetado por Brunorix às 19:00

01
Out 09
Premissas: Alguém está a cortar algo com uma faca (carne, peixe, fruta ou legumes).
Exercício 1: Descrever a cena dando uma noção de irritação da pessoa.
Exercício 2: Descrever a mesma cena como se estivesse a fazer amor.
Tempo: 5 minutos cada.


Exercício 1

O primeiro golpe acertou no dedo, o segundo na cenoura e o terceiro no tomate. O quarto, que já foi com o cabo, esborrachou em vez de cortar. A vítima foi o alho francês.

Recomeçou. Desta vez não foi ao dedo, mas não deu hipótese à cenoura e ao tomate. Quanto ao alho francês, esse já estava morto. Repetiu tudo incluindo o dedo. Imbuído de espírito cortante, cortou tudo: cenoura, tomate, dedo. Cenoura, tomate, cenoura. Tomate, dedo, tomate, cenoura, dedo, dedo.

A faca saltava descontroladamente de um vegetal para outro. O tom avermelhado dos vegetais sobre a mesa indicava que várias vezes voltara aos dedos.




Exercício 2

O primeiro golpe acertou no dedo. Foi o primeiro arrepio. O segundo acertou na cenoura, as pernas tremeram. O terceiro acertou no tomate com um lascivo poder de corte. O quarto que foi mais esfregado que cortado, esborrachou um erecto alho francês.

Recomeçou. Desta vez não foi ao dedo mas penetrou a faca na cenoura e no tomate. E penetrou de novo. A cenoura e o tomate pediam mais. Agora com as duas mãos.

- Espeta-me outra! – Gritou a cenoura.
- Não te esqueças de mim… – Gemeu o tomate.

Mãos, cenoura, tomate e facas dançavam descontroladamente. Surgiu sangue sobre a mesa, um deles ficara mais experiente. Afinal não. Tinha-se cortado.

Bilhetado por Brunorix às 13:27

22
Mai 09
Era o seu terceiro livro de sempre. Antes daquele só tinha lido outros dois: o primeiro e o segundo.

Decidira ler pela noite fora e as páginas brancas começavam a misturar-se com as pretas, numa confusão de sol que nasce com estore que morre. O livro estava cansado e com sono. As linhas não paravam quietas e os parágrafos insistiam em misturar-se. Os acentos dançavam, as virgulas dormiam e os pontos finais fugiam para os inícios.

Quando a manhã chegou já era de noite. Tinha lido o primeiro, segundo, terceiro, sétimo, quinto e último capítulos. Era uma história sobre adormecidas noites sem sono. Talvez tivesse escolhido mal aquele livro para ler em terceiro lugar. A sua falta de experiência como leitor dificultava a compreensão do texto. Era um livro em branco, como a noite.



Estava a dormir acordado e nem reparara que estava a ler o livro ao contrário. Não de trás para a frente, mas ao contrário no sentido da cabeça para os pés e do vice-versa. O livro indignado cuspiu uma folha para o chão e ele finalmente abriu os olhos.

Cinzenta da Baía um poema de Marilsa Fontes, podia ler-se na folha cuspida. Apanhou-a do chão e assistiu estupefacto a uma revolta de letras em tons de manifestação luso-brasileira: os C`s apareceram de raiva, os SE`s e os ME`s passaram para a frente das palavras, os tons ficaram menos nasalados e a rigidez poética assentou as suas regras. Depois do tumulto passou a ler-se A Baía Cinzenta um poema de Maria da Fonte.

Pouco interessado em manifestações poéticas, rasgou a folha e deitou as lusófonas poesias no caixote de prosa rasgada que estava debaixo da secretária. Endireitou o livro e prosseguiu a leitura. Afinal, era de noite, o sol acabara de nascer e tinha que acabar o seu terceiro livro de sempre.





P.S. - Exercício em que um personagem está a ler um livro. Acrescentar um acontecimento pessoal recente e mexer bem. Levar ao forno em 15 minutos. Revisto.

Bilhetado por Brunorix às 11:52

19
Mai 09
Eu, calções de crescimento
Acordo longe do mar, perto da
morte.
Sinto uma procura de letras soltas
paradas no tempo da vida.

Sonhos nervosos em lençóis acordados
Fazem dos proibidos momentos, a
abertura das portas da convicção.
Estendo a mão da esperança
e apanho flocos de realidade.
      e de verdade.

A noite dorme e eu não.
O tarde acabou de se misturar
com o cedo.



Factos: Começado num workshop de poesia em plena luz do desconhecido, acabado na escuridão barulhenta de uma impressora às 5h e 32m da manhã.
Bilhetado por Brunorix às 05:19

11
Mai 09
Exercício sobre personagem principal e secundário. Fazer emergir o segundo, descrevendo-o, mais que o primeiro através de um acontecimento. 15 minutos. Ready?! Go!


Manuel Augusto Principal apanhava o mesmo autocarro todas as manhãs. Era o 45 apinhado que ia do Bairro das Lagostas para o Alto de São Gonçalo. Todos os dias era o terceiro da fila na paragem, atrás da mesma velhota de sempre e do mesmo miúdo desaparecido atrás de uma enorme mochila de sempre.

Nessa manhã, esta em que nos encontramos, Manuel Augusto Principal estava na tal fila de sempre atrás dos etcs de sempre, mas por um qualquer desígnio do destino estava 30 cm mais perto da estrada. Foi assim, que o autocarro já atrasado, ainda apinhado e 45 desde sempre, lhe deu uma valente pantufada (ou autocarrada, porque de pantufa não tinha nada) no distraído ombro direito.




O aflito motorista, António José Secundário, precipitou-se porta fora na direcção do Principal, o caído, levantando-o de uma só esperança no desejo de o ver inteiro. Já conduzia naquela carreira há mais de 25 anos e todos os dias parava o autocarro naquela paragem de sempre, mas 25 cm mais longe do passeio. O que pelas minhas contas, e até agora, perfaz uma pantufada (ou a outra…) de 55 cm. Isto vindo de um autocarro tem que se lhe diga, e que se lhe sinta.

António José Secundário, mal dizia a sua quota-parte de centímetros ao lado, enquanto pensava nas consequências daquele acidente: ia ser chamado ao chefe de turno, depois ia ser chamado à direcção, ia ser suspenso 3 dias até se completar o inquérito e quem é que ia alimentar os seus 4 filhos, sobretudo agora que a mulher o deixara?! A sua impecável folha de serviço ia ficar manchada, já não era promovido a Condutores VII, já não seria aumentado em 23€, já não podia levar os miúdos de férias… mas afinal o que lhe teria passado pela cabeça para ter sido pai aos 50? E aos 52… e 54… 55… Ainda por cima, agora, sem ajuda. Tinha que arranjar alguém rapidamente. Estava decidido a por anúncio no jornal se fosse preciso.

Lá em Angola é que a vida era boa. Era um jovem despreocupado, livre de tudo e de nada… talvez fosse do tempo… ou do tempo. Tempo e tempo ajudavam muito em África. Deixara uma promissora carreira de Engenheiro mecânico para ser motorista na metrópole… ah se o arrependimento matasse… era só temporário e já lá vão 25 anos… e agora esta falha…

- Olhe, importa-se?! Eu é que sou o Principal e continuo aqui estendido, inteiro mas ainda estendido!

- Desculpe… distraí-me com pensamentos secundários!
Bilhetado por Brunorix às 19:39

06
Abr 09
Introdução – Exercício de utilização do mesmo personagem em diversas circunstâncias e condicionantes. Segundo exemplo, 15 minutos. Tem que começar num lugar alto a observar algo e tem cinco interrupções a inserir obrigatoriamente: “tenho saudades do tempo”, “será que perdi o meus dias ou os meus dias perderam-me”, “é mais azul quando dói”, “mas não, isso não”, “as coisas que voltam não voltam”


Acção:

Warajad Sterck Rashid estava na varanda da sua penthouse a fotografar as pessoas que se vestiam na pressa matinal. Incrível a quantidade de pessoas que o fazem de cortinados abertos e que confiam na descrição das alturas, esquecendo-se que há sempre alguém mais alto. Curiosas, também, as diferenças de janela para janela; nalgumas vêem-se corpos que se lamentam terem que ser tapados e noutras felizmente que o fazem.

Tenho saudades do tempo em que percorria, todo nu, os campos atrás da casa. A leveza de correr sem roupa, deixava fresca a erva do meu crescimento.



Deve ser por isso que gosto de corpos nus. Sobretudo os dos outros e especialmente os que ainda não conheço. Não há mistério melhor que desvendar o que se esconde por trás de cada peça de roupa. As belezas gritantes, os choques constantes, os desgostos de fartura e qualquer inesquecível escultura, aumentam-me a procura.

Será que perdi os meus dias ou os meus dias perderam-me nesta busca pelo corpo? Talvez tenha deixado lá na aldeia, o espaço que devia dar a cada um. Mas não o faço por mal, observo porque aprecio. A liberdade conturbada da minha infância é mais azul quando dói a razão. Nos dias em que me passa a dor, sinto-a verde e inocente e aí sim tudo parece no lugar certo.

Para ir à cidade obrigavam-me a vestir, mas não, isso não: antes ficar nu por aqui que vestido por lá. Costumava pensar. Como tudo mudou, agora adoro estar vestido a sentir a segurança da envolvência. As coisas que voltam não voltam a despir-se mais. Já não consigo correr nu, talvez a gravidade tenha a sua influência na mudança de gosto. Que desgosto…

Bilhetado por Brunorix às 19:06

Introdução – Exercícios de utilização do mesmo personagem em diversas circunstâncias e condicionantes. Primeiro exemplo, 10 minutos. Tem que falar dos pais, de sítios onde viveu, do acontecimento mais importante da sua vida, da actividade principal e onde vive agora.


Acção:

Warajad Sterck Rashid era filho de dois pais. Homens. Nunca soube quem era a sua mãe biológica, mas também nunca sentiu muito essa falta pois um dos seus pais cumpria bem o papel de mãe. Viveu grande parte da sua vida numa aldeia do Norte da Índia, porque a sua peculiar família não era bem aceite na cidade. Entre outras coisas, aprendeu a ler e a escrever em casa. Os seus pais eram, respectivamente, um fotógrafo (o pai-pai) e um escritor (o pai-mãe).



A aldeia onde vivia só tinha população velha e provavelmente a maior parte deles nem conseguiam ver ou ouvir bem a sua família. O acontecimento mais marcante da sua vida, deu-se precisamente com a mudança de um jovem casal e da sua filha, lá para a aldeia. O impregnado ar feminino que passou a respirar mudou-lhe mais que a sensibilidade nasal.

O mundo que conhecia foi-se transformando aos poucos, ao ponto de aos 20 anos abandonar a aldeia para ir viver para a cidade. Queria ser realizador. O facto de sofrer de crise de identidade ajudava muito na criação de personagens para os seus filmes. Adorava viver cada uma delas, e confundia na sua cabeça a nitidez da ténue linha entre o que era ele e o que era cada personagem. Por isso se especializou em filmes sobre sonhos que nunca contam a verdade.

Actualmente vive numa penthouse de um enorme prédio na cidade. Sempre que não está em filmagens sai para a rua com o seu inseparável fotómetro e a sua velha Polaroid, em busca do filme seguinte.

Bilhetado por Brunorix às 19:02

26
Mar 09

Enquadramento

Escrever a partir de uma série de movimentos feitos por uma actriz. Não há falas, só gestos e expressões. Em duas partes, a primeira descreve apenas os movimentos factualmente enquanto se observa; a segunda é o exercício propriamente dito. Uso da criatividade (d)escritiva.


Acção

Primeira parte (2 minutos) – Entrar. Cara de espanto. Pegar num objecto. Acariciá-lo. Apalpar as paredes com ar de saudade. Pegar num pano. Emoção nostálgica. Olhar a janela. Abri-la. Sensação familiar. Sentar e pegar num livro. Cheirá-lo. Recostar e sorrir.

Segunda parte (15 minutos) – Abriu a porta para o que já sabia que não sabia que ia encontrar. Esperava algo, mas não sabia o quê. Estaria tudo na mesma?! Entrou…

A primeira coisa a cair foi o queixo, seguiu-se logo a surpresa e a admiração. Só o conforto do alívio se manteve de pé. Deu dois passos no interior da certeza e pegou na primeira recordação que os seus olhos viram. Abraçou-a como a um filho. Largou-a.

Acariciou as paredes e esfregou o contentamento na branca frescura da tranquilidade. Afinal, ainda se lembrava do cheiro da infância.

Pegou num pano que bordara na escola e sorriu na nostalgia da falta de jeito. Nunca se dera com trabalhos manuais. Correu para a janela e abriu-a de emoção. A paisagem que se via era nova mas completamente familiar. Tantos anos longe.



A secretária, apesar do pó do abandono, estava impecavelmente limpa. Tudo no mesmo sítio como se o tempo tivesse sido desligado. Sentou-se na cadeira de outrora e recuou sensações. Rebobinou a vida, e agarrou no último livro que tinha lido naquela secretária. Abriu-o. Cheirou-lhe à história que ainda sabia de cor.

Que bom voltar à criança intemporal que sempre fora até ter que deixar de ser, quando os minutos passavam devagar e as horas se distraíam em pensamentos. Foram bons momentos.

Posou o livro, recostou-se no descanso e sorriu até hoje.


Bilhetado por Brunorix às 17:38

12
Mar 09
Exercício: Pegar nas frases de um lado, juntar mentiras e conflitos internos, agitar bem… agitar bem e deixar escrever.

O sonho estava acordado, Já há duas noites que não conseguia dormir. Tinha dores de barriga e estava inchado de medo de não conseguir voltar a ter as noites tranquilas de sempre. Sentia as entranhas da alma na fronte do pensamento e rebolava impacientemente na sua cama de exaltação.

Contava carneiros, ouvia a respiração, cheirava flores imaginárias, meditava, pensava em paisagens tranquilas… nada. Não conseguia fazer o que sempre fizera toda a vida: dormir!

Decidiu pegar num personagem imaginário (W. Sterck), juntou-lhe mentiras e conflitos interiores e levou-o pelos campos do pensamento na esperança de conseguir adormecer.




Wanderlei Sterck vendia água de coco na praia de Copacabana, às meninas de biquíni desaparecido e fio dental, ou seja, a todas. Andava pela areia escaldante a apregoar o olho, enquanto regalava a venda. Quer dizer… isto era o que sonhava quando estava acordado, porque quando estava a dormir sonhava que estava acordado.

Mentira! A verdade é que não conseguia dormir já há muitos anos e estava inchado de medo de nunca mais o conseguir fazer. Também não se chamava Wanderlei, mas sim Wanda Sterck e era travesti nas noites de Lisboa. Talvez por isso não conseguisse dormir, pois tinha que o fazer de dia quando devia estar acordado. O desgosto que causara ao seu pai, serralheiro mecânico de profissão e de atitude, é que o mantinha vivo, e acordado, pois as danças pela noite rendiam bom dinheiro.

Mentira! Chamava-se Winthorp Sterck the III e era filho de um banqueiro inglês podre de rico e de carácter. Sonhava com as praias do Brasil e os biquínis que por lá andavam a dançar em corpos bronzeados. No entanto, tinha que trabalhar 12h por dia fechado no banco do seu pai. Era o preço do seu dinheiro mentiroso.

Mentira! Warajad Sterck Rashid era um realizador indiano de filmes sobre sonhos que nunca contavam a verdade e que estavam sempre acordados. Era viciado no corpo da mulher e muitas vezes vestia-se como uma. Sofria de uma grave crise de identidade, que se revelava muito útil para criar personagens para os seus filmes, mas que nunca o deixava dormir. Esta é a única verdade.


Quase sem dar por isso, o sonho finalmente adormeceu.


Bilhetado por Brunorix às 16:56

04
Fev 09
MAÇÃS SALGADAS #1

Cheirava a fruta e a medo. A separar, um muro de pedra e areia que se ia desfazendo com o passar dos anos para o lado de lá e dos corajosos em sentido inverso. Sempre foi o grande baptismo daquela escola: conseguir trazer uma maçã para provar a ida. O sabor? Esse podia ser deitado fora.

Quarta-feira de aventuras. Já andava naquela escola há 3 meses e ainda não tinha saltado o muro. Já não conseguia fugir ao ritual de aceitação. Tinha chegado o meu dia.

Regras: saltar o muro que ficava nas traseiras da escola e voltar com uma maçã.

Primeira condicionante: do lado de lá do medo havia uma quinta com muitas árvores.

Segunda condicionante: as de fruta eram as mais longe do muro e as mais perto da casa.

Terceira condicionante: conseguir voltar são e salvo porque, segundo constava, o maluco do velho que lá vivia disparava sobre os miúdos que lá entravam.

Quarta condicionante: disparava mesmo. Embora fossem tiros de sal, faziam uma ferida dolorosa e eram o símbolo da derrota.




O ritual exigia que as regras fossem ditas em voz alta momentos antes da partida. Nesse dia nem as consegui ouvir e deixei que fossem abafadas pelos nervos. Os sons iam para o estômago e na cabeça só ouvia o coração. Já tinha as mãos encostadas à inevitável escalada e ainda hesitava. Os olhares de todos convenceram-me.

Passar para o outro lado era a parte fácil pela execução, mas difícil pelo que se seguia. Quando aterrei no chão que me esperava, estava a suar. As pernas tremiam e o corpo colava-se ao muro. As árvores eram horrivelmente bonitas e assustadoramente convidativas. Caminhei na direcção do cheiro, mas parecia nunca mais lá chegar. A única árvore que tinha maçãs, ficava mesmo junto à janela da casa do velho.

Dois troncos antes do objectivo fruto, parei para respensar (que é uma espécie de respiração do pensamento), acalmei as pulsações e comecei a correr com a determinação mais assustada que tinha. Agarrei a maçã com a pressa da alegria e no regresso vitorioso deixei-a cair.

Voltei atrás para cumprir o destino honroso e no momento em que apanhei o frutado prémio, ouvi um berro que me aqueceu o pânico…


(continua)

07
Jan 09
CONDICIONANTES:

Regras: Através da sensação de uma experiência, descrever outro acontecimento.
Experiência: Durante um mergulho a perna fica presa numa rede de pesca. Falta de ar.
Acontecimento: Estar preso (num estabelecimento prisional).


O PROPRIAMENTE DITO:

O ar ia acabar. Ainda faltavam vinte anos de pena e o ar não ia chegar. Queria respirar e não sabia como, pois sentia o aperto do tempo nos meus pulmões. O ar daquela cela tinha que durar mais vinte anos e, por isso, tentava respirar pouco de cada vez. Os 10 minutos de ar livre por dia, não me chegavam para encher os tanques da alma. Estava seco.

No entanto, estava molhado na clausura como se de um aquário se tratasse. Duas vezes por dia deitavam comida na minha água. Eu mal conseguia alcança-la, pois sentia as pernas presas nas redes da lei. Essa mesma lei injusta que me mantinha ali fechado e com pouco ar. Agora sei porque os peixes de aquário abrem e fecham tanto a boca – não conseguem respirar.

Vinte longos e asmáticos anos e eu com as pernas presas. De vez em quando o meu advogado olhava-me do lado de lá das grades e só faltava bater no vidro para ver se eu me mexia.

Lá vem a comida… não consigo… tenho as pernas presas e pouco ar. Enrodilhado nesta cama, neste cárcere sinto a chama molhada. A minha boca abre e fecha e eu sei que há mundo lá fora.

Vinte anos e nem fui eu que a matei!


Bilhetado por Brunorix às 16:38

10
Dez 08
Condicionantes: Ambiente de casal. Falar de A, através de B. 15 minutos.

A – Um mata o outro
B – Fazer a barba / Passar a ferro




Fazer a ferro a barba passada

Manuel Joaquim gostava de fazer a barba no banho. Enchia a banheira de água e sentava-se lá dentro. Depois pegava na máquina e cuidadosamente (para não molhar o fio) barbeava-se ao som do seu trauteio.

Em cada dez vezes que o fazia, ouvia onze:
– Oh homem! Tu qualquer dia deixas cair a máquina na água e depois vais fazer a barba, mas é para o outro lado!

Indiferente a estes reparos, mantinha este hábito todas as sextas-feiras ao fim da tarde, quando se arranjava para ir sair… com a(s) outra(s). Este facto, quase consumado como hábito, era sabido e aceite. Talvez mais sabido que aceite, mas talvez… ou talvez não!




O que é certo, é que nessa sexta-feira, última de vida, enquanto Manuel Joaquim se barbeava com a alegria semanal, Dulce Maria foi passar a ferro na casa de banho.

– Querem lá ver isto!? Emparvaste de todo, mulher?!
– Oh querido, deixa-me estar aqui contigo um bocadinho… depois vais-te embora e só te vejo amanhã. Assim, enquanto eu passo vamos falando!

Estranhando de morte (mal ele sabia!) esta atitude, continuou na demanda pelar desbastando com inquietação. Mais estranhou, quando o habitual reparo da máquina foi substituído por um:

– Estou a passar a tua camisa pérola de folhos, que é para ires bonito.

Se estivesse a comer tinha-se engasgado, mas como não estava prendeu apenas um pêlo do bigode estimado, que não era suposto cortar. Mirrava a sua masculinidade na banheira, perante a estupefacção e o assombro. Só podia ser loucura!

– Queres que passe as calças castanhas de bombazina? Ficavam bem com esta camisa.

(silêncio)

– Dulce Maria… estás bem filha? Estás a começar a assustar-me.
– Ora essa?! Porquê? Por não querer o meu homem a sair todo maltrapilho com outras mulheres?
– Oh Dulcinha… quais outras mulheres? Tu achas que eu era capaz… eu vou jogar poker com os amigos…
– …

Perante um encolhimento masculino em banheira onde já não havia boa esperança, agigantou-se um Adamastor de ferro na mão, bramido ao compasso de um olhar furioso de muitos anos de tormentas.

Um ferro largado do cabo da certeza, acabou por ser a tempestade em banheira de água.
Bilhetado por Brunorix às 12:56

Condicionantes: Ambiente de casal. Falar de A, através de B. 15 minutos.

A – Sogra lá em casa
B – Fazer zapping / Ler revista




Folhas e Canais

A cada folha que passava, um canal mudava no plasma. Uma revista lida em crescendo rasgar, fazia dos 10 segundos de cada imagem televisiva uma história só. Uma folha, um canal, uma folha, um canal, uma folha rasgada um comando que caía no chão, uma folha, um canal…

(pausa)

– Interessante este artigo… - Iniciava Joana de mansinho - É sobre famílias que abandonam idosos.

– Este programa também é muito interessante… é boxe tailandês!

– Ai que horror! Vê lá tu que há pessoas que no Natal vão deixar os velhos nas urgências dos hospitais!

– Pois é, que horror! Já viste como ele tem o olho a sangrar?! Ca ganda soco! E o árbitro ia levando também!

– Eu cá não era capaz de fazer isto a ninguém… nem à tua mãe! Se bem que ela ainda tem o teu pai, agora a minha…

– Em cheio no estômago! Viste?! Estes gajos têm uma agilidade. Parece que não lhes dói nada!

– Agora que a minha tia morreu… está a velhota lá sozinha… e o pior é que já não se aguenta muito bem de pé…

– Olha, olha… aquele também não! Ca ganda tareia que ele está a levar!

Uma folha, um canal, uma folha, um canal…




– Oh Ricardo… já pensaste bem?! É a minha única mãe! Coitada…

– Epá, ca ganda frango! É assim que querem ganhar campeonatos?! Eu descontava-lhes era no ordenado… francamente pá!

– Ela até podia ajudar com os miúdos…

Uma folha, um canal… Uns minutos de National Geographic depois…

– Já viste estas tribos africanas?! Quando morre o chefe da tribo, enterram a mulher também. Engraçado…

– Engraçado?! - Exclamava Joana remetendo a sua raiva ao folhear desenfreado - És mesmo insensível!

– Insensível?! - Gritou Ricardo aumentando o volume da sua televisão interna - Eu sou é muito sensível, por isso não quero nem ouvir falar da tua mãe cá em casa!

- Estúpido!

Uma folha, um canal, uma folha, um canal…
Bilhetado por Brunorix às 12:14

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