Escritas do fundo do mar

03
Jul 09
Esplanada. Sol. Calor. Em cima da mesa, uma bebida com gelo deixava escorrer gotas de sedução pelo exterior do copo. Levou-o aos lábios e bebeu de olhos fechados aquele pequeno prazer refrescante. Os corpos pouco vestidos que iam passando, aumentavam ligeiramente a temperatura já quente.

Da mesa do lado uns óculos escuros pareciam seguir os seus movimentos. Atrás dos óculos, um cabelo liso de mel e avelã ladeava um pescoço fino em tom Verão torrado. Um curto vestido branco deixava adivinhar uma escultura divina moldada a mãos de experiência. Umas pernas torneadas a ouro indicavam sem pudor a direcção do desejo. Os óculos levantaram-se e o vestido foi logo atrás. Decidiu seguir os dois.

Dirigiam-se a passos convidativos para o lobby do hotel e entraram no elevador. Esperou ansiosamente que os dígitos avançassem. Sexto andar. Chamou de novo o elevador e entrou apressado. No canto do espelho, um 7 escrito a batom vermelho confirmava as intenções.

Quando bateu, com a suavidade possível, na suite 607 verificou que a porta não estava fechada. A penumbra do interior contrastava com a frescura do ar condicionado. As cortinas corridas deixavam passar apenas a luz suficiente para que se visse no chão o vestido branco. Em cima da mesa os óculos escuros. Mais à frente, uns sapatos perdidos e logo depois uma fina lingerie em tom pérola desejo, indicavam o caminho do quarto. Seguiu as indicações e entrou. A escuridão era a mesma, mas a nudez escultural daquele bronze excitante, contrastava com o branco do lençol.



Sem perguntas despiu-se também e exibiu com vergonha toda a excitação daquele jogo. Ardia em vontade e precisava do toque daquele corpo. Aproximou os seus lábios da boca contrária e viu pela primeira vez a luz daqueles olhos. Como se isso fosse possível, sentiu o desejo a aumentar ainda mais.

Quando as peles se tocaram o arrepio foi tão grande que gemeram em conjunto. Enrolaram-se em danças de descoberta e deixaram-se conhecer por todos os poros. Entrelaçados como um só fundiram as suas vontades numa doce penetração. Sentiram o tempo a parar. Só eles se mexiam. Trocavam lideranças, imprimiam vontades, expeliam desejos. O porquê de estarem vivos parecia ter todo o significado naquele momento.

Passearam por toda a suite, experimentando lugares e posições. Gemiam, gritavam, suavam e entregavam-se com a verdadeira vontade de quem não deve explicações. Quando a altura lhes pareceu indicada, deixaram fluir toda a energia num gesto final. O espasmo de cada orgasmo, provocou ondas de prazer até às pontas dos dedos. Com a calma da vitória, deixaram que os corpos se desligassem lentamente.

Com a naturalidade dos momentos intensos deram um abraço de despedida. Perceberam pelo toque que nunca mais se voltariam a ver e só não chegaram a perceber que nem sequer falavam o mesmo idioma. As palavras não tinham sido necessárias.


Bilhetado por Brunorix às 18:59

26
Jun 09
Deserto de prazer

Já não havia nada a fazer. Chorava lágrimas secas de arrependimento por não ter escrito um conto mais cedo, mas a verdade é que não tinha dado de beber à sua criatividade erótica. Agora, a travessia era longa e o deserto da lassidão tinha que ser ultrapassado.

O andar tornava-se cada vez mais penoso. A pele parecia casca de carvalho e os últimos laivos de frescura abandonavam o seu corpo na procura da sombra que não havia. A boca estava seca do ambiente e os lábios estalavam de desespero. Tentava escrever mas não conseguia. O calor era demasiado.

A pouca roupa que lhe restava, rasgava-se da secura do momento deixando queimar de dor as partes que se iam desnudando. Sabia que não podia parar. Não parou. Seguia imaginando histórias dignas de registo, mas as ideias começavam a confundir-se e os joelhos trocavam insistentemente de posição. Os pés atropelavam-se e o equilíbrio desistiu.

Quando abriu os olhos tudo estava na mesma, mas muito pior. Arrastou-se penosamente e dirigiu-se para o que parecia ser uma piscina. Sem se perguntar o porquê, deixou-se cair na água fresca, enquanto a sua (pouca) roupa, de tão seca que estava, se desfazia na água do contentamento. Sorriu da sua nudez refrescante e nadou na liberdade encontrada.

O contentamento era tão distraidamente infantil, que nem deu por um corpo que se aproximava debaixo de água. Quando sentiu umas mãos fortes nas suas pernas, já menos queimadas, assustou-se por breves momentos. O corpo musculado que vinha atrás das mãos, merecia-lhe a luxúria de não querer perceber, mas apenas de sentir. A mistura entre realidade e ficção tornava o jogo mais excitante. As mãos subiam pelo seu corpo e já agarravam os seus seios com uma firmeza decidida, enquanto o abraço vindo detrás garantia que não havia fuga. Mas quem queria fugir?!




Voltou-se, enquanto aquele ser excitantemente apelativo procurava os seus lábios de prazer. A medo abriu a boca e deixou entrar uma língua ávida de procura. Dentro e fora de água tudo era igual. Respirar não era problema. Deixou que corpo se juntasse ao seu, numa proximidade cúmplice e volumosa. Pensou retribuir um pouco do que estava a sentir e decidiu tomar a iniciativa de lamber aquele sexo duro de vontade. Continuava a não querer perceber o que se passava e depressa abriu o seu interior para a penetração mais refrescante da sua vida. O ritmo era compassado e vigoroso criando ondas lascivas como nunca sentira. Sentiu o prazer dele dentro de si e o seu orgasmo estava eminente. Alguns ritmos molhados depois, atingia a plenitude das suas vibrações e rebentou debaixo de água num grito de loucura fresca.

As pulsações retomavam a cadência normal e os corpos separavam-se lentamente. Assim como se veio, foi-se. Nem uma palavra. Desapareceu o corpo, desapareceu a piscina, desapareceu a água, desapareceu o deserto, desapareceu o calor.

Quando acordou na praia, o sol já se tinha posto e uma brisa refrescante corria ligeira. Já não se via ninguém e apenas algumas gaivotas brincavam na areia. Aberto na sua mão, o caderno de contos marcava mais uma história. Começou a ler: Deserto de prazer

Bilhetado por Brunorix às 14:41

24
Jun 09
Uma memória, sorridente, descia despreocupada a rua da consternação em direcção ao largo do destino, sem olhar paredes. Tinha o olhar fixo no fim da rua e era para lá que se dirigia. A certeza de quem era e de onde vinha, notava-se nas suas passadas convictas e na força dos seus pensamentos.

Lá em baixo, no largo, as suas irmãs esperavam ansiosas e com o peito a queimar saudade. A colecção de vida estava incompleta com a falta desta memória e o andar para a frente estava suspenso pelo abraço da sua chegada.

Vagabundeara muito por outras ruas, como a da amargura e a da saudade, mas sentia que tinha chegado a altura de conquistar o seu lugar na razão do sentido único. O depois pedia-lhe que assim fosse e o agora puxava-a para longe do que já não era. Deixara para trás roupas mal dormidas e muitas noites de frio e solidão. Sentia correr nas veias a temperatura da certeza.

Quando chegou ao fim da rua e as uniões se deram, sentiu um ligeiro arrepio de passado. Fechou os olhos e deixou que fosse levado pela brisa morna que por ali passava. Sorriu de presente e abriu os olhos para o futuro. O caminho iluminava-se à sua frente, deixando ver apenas a felicidade. A combinação de sentimentos que influíam de um modo inelutável na direcção do destino, brilhavam no chão da passagem.

Novamente parte do todo, seguiu. Nunca mais olhou para trás e quando precisava de o fazer, limitava-se a caminhar de costas mas mantendo sempre a direcção.




Viver, é coleccionar memórias em sonhos acordados.

Bilhetado por Brunorix às 13:15

23
Jun 09
Zero certo. Nunca antes pensado mas certo. Assim se fazia grande o que era pequeno em terras de diminuta certeza. Na verdade, as proeminências do desejo batiam asas de convicção causando ventos de mudança. Sem esperança.

Uma criança crescia no ambiente desconhecido da partilha, sem saber que da sua vivência se faria sapiência para o resto da matilha. Que maravilha. A inocência de acreditar, faz dos devotos incautos os mais descontraídos do futuro. Sem barulho.

Duas gotas de suor saíram de casa para ir trabalhar. Despediram-se na esquina do ombro e seguiram, cada uma, o seu caminho. A segurança do anoitecer certo, fazia sorrir a separação. Escorreram todo o dia em laboriosa vontade. Sem ansiedade.

Três folhas de um só tronco viviam na harmonia do mesmo sol. Banhavam o seu crescimento, ao esplendor aquecido da seiva irmã que lhes corria nas veias. Se uma murchava, as outras seguiam. O inverso era verdade também. Sem desdém.

Quatro atitudes jantavam na mesma cabeça: a dúvida, a verdade, a confiança e a partilha. Discutiam planos de futuro entre garfadas e gargalhadas. Brindavam inebriadas às memórias do que depois será, sem pensar sequer no que sempre seria. Sem apatia.

Cinco mangueiras regavam o mesmo quintal, numa fúria molhada pelo maior débito. Afogavam-se plantações, invejas, frutos e outras questões. Ninguém desligava torneiras e a inutilidade das acções repetia-se em litros de desperdício. Sem ofício.



Seis ideias de mãos dadas, caminhavam pela avenida das convicções armadas, em direcção ao fosso pequeno. Manifestavam intenções de esperança, em ilusão de adulta criança, e seguravam cartazes de indignação. Sem intenção.

Sete cores misturavam-se em palete de artista, sobre a tela da cidade, bem espalhadas e com vista. Perdiam identidade enquanto se misturavam pigmentos próprios, mas adquiriam luxúria libidinosa perante tal orgia pictórica. Sem retórica.

Oito raios, nenhum que os parta, eram cuspidos em cruzadas descargas por uma nuvem cinzenta de raciocínio. Apontavam intenções eléctricas aos inocentes funâmbulos que por baixo pensavam, em equilíbrio de corda falsa. Sem alça.

Nove, esfora nada, contas de um rosário ateu, rezavam em uníssona descrença para a salvação das suas almas. Acabaram afogadas em comédia, depois de dizimadas as verdadeiras razões da partilha de sua fé. Salvaram-se as desalmadas e as menos crentes Limpinho. Sem dentes.

Dez dedos de duas mãos, escreviam contagens insipientes, sorrindo entre dentes. Ao mesmo tempo, dez dedos de dez pares de pés, tamborilavam o chão frio, num total de cento e dez, esperando pacientemente a contagem que não mais se viu. Sem pariu.

Sobra o que sobrar…


Bilhetado por Brunorix às 16:45

15
Jun 09
Quando os primeiros apareceram, ainda a sua pele estava fria da noite anterior, e começaram logo a desarrumar tudo ao seu redor deixando pegadas parvas na tranquilidade de quem acordava, percebeu que o seu descanso terminara e que depois destes se seguiriam todos os outros. Os olhos descolavam a custo e contra vontade. O sol já espreitava, na sua costumeira e irritante alegria.



O dia prometia a habitual intensidade de trabalho ao calor, a suportar o peso de milhares de pessoas: umas que a pisavam, outras que se deitavam sobre ela, outras que a esburacavam, outras que lhe espetavam chapéus nas costas, outras que a sujavam, outras que jogavam, algumas até roncavam, outras que a construíam, outras que ali estavam e outros ainda que passavam.

Assim foi e assim se cumpriu.

Mais tarde, penosamente mais tarde e com o sol quase escondido, conseguiu dar os primeiros bocejos de algum descanso. Os últimos resistentes arrumavam as toneladas de tralha indispensável para a praia e deixavam impressas as últimas pegadas do dia. Só o mar se sentia e o reino do silêncio começava timidamente a instalar-se.

A noite, que logo se seguiu, era serrada pelo lenhador do tempo e a areia finalmente dormia. Sonhava com um dia chuvoso e sem ninguém na praia. Se ao menos chovesse no dia seguinte…

Dia seguinte: chove desalmadamente. *



* - Qualquer coisa (em litros por metro quadrado) que fica entre a crueldade de não ter alma e a bátega imensa que se abateu hoje. Ao menos há alguém satisfeito!
Bilhetado por Brunorix às 17:47

02
Jun 09
O Gladíolo Verde de imaturidade cresceu na rua da esperança, dois palmos abaixo do original caule do Gladíolo Vermelho de raiva e adulto de convicções. Cresceu curvo de intenção e sempre teve dores nas costas da alegria, que fugia.



Andou na escola do tempo e chumbou opções, enquanto passava concomitâncias. Apenas o suficiente. Nada de esforço porque a apanha do sol doía nas intenções. Travou-se de razões com a obrigatoriedade e tatuou nas folhas da vida a marca da ignorância, ou seria apenas criança?

Julgou a rigidez plantada e regou orgulho para o caminho, só mais um bocadinho. Água a mais. E agora, onde vais?! Afundou de novo a raiz, afinal já não era petiz, e fincou convicções no destino. Mudou de vaso. Seria para tanto o caso? Foi.

A distância do orgulho não é circunstância, é implicância. Viradas as costas, e os vasos, não há sol que apanhe os dois lados. Quando o Gladíolo Vermelho se sola o Verde insula. Depois trocam. E mensagens também.



O Gladíolo – que já não é assim tão – Verde, está a mudar de cor e a perder a dor. Avermelham-se as batidas do futuro, mas ainda não cresce nenhum verde mais abaixo. Por enquanto. Pasme-se o espanto.

Jorram-se decisões em espadana loucura. Que ternura.

Bilhetado por Brunorix às 13:31

22
Mai 09
Era o seu terceiro livro de sempre. Antes daquele só tinha lido outros dois: o primeiro e o segundo.

Decidira ler pela noite fora e as páginas brancas começavam a misturar-se com as pretas, numa confusão de sol que nasce com estore que morre. O livro estava cansado e com sono. As linhas não paravam quietas e os parágrafos insistiam em misturar-se. Os acentos dançavam, as virgulas dormiam e os pontos finais fugiam para os inícios.

Quando a manhã chegou já era de noite. Tinha lido o primeiro, segundo, terceiro, sétimo, quinto e último capítulos. Era uma história sobre adormecidas noites sem sono. Talvez tivesse escolhido mal aquele livro para ler em terceiro lugar. A sua falta de experiência como leitor dificultava a compreensão do texto. Era um livro em branco, como a noite.



Estava a dormir acordado e nem reparara que estava a ler o livro ao contrário. Não de trás para a frente, mas ao contrário no sentido da cabeça para os pés e do vice-versa. O livro indignado cuspiu uma folha para o chão e ele finalmente abriu os olhos.

Cinzenta da Baía um poema de Marilsa Fontes, podia ler-se na folha cuspida. Apanhou-a do chão e assistiu estupefacto a uma revolta de letras em tons de manifestação luso-brasileira: os C`s apareceram de raiva, os SE`s e os ME`s passaram para a frente das palavras, os tons ficaram menos nasalados e a rigidez poética assentou as suas regras. Depois do tumulto passou a ler-se A Baía Cinzenta um poema de Maria da Fonte.

Pouco interessado em manifestações poéticas, rasgou a folha e deitou as lusófonas poesias no caixote de prosa rasgada que estava debaixo da secretária. Endireitou o livro e prosseguiu a leitura. Afinal, era de noite, o sol acabara de nascer e tinha que acabar o seu terceiro livro de sempre.





P.S. - Exercício em que um personagem está a ler um livro. Acrescentar um acontecimento pessoal recente e mexer bem. Levar ao forno em 15 minutos. Revisto.

Bilhetado por Brunorix às 11:52

11
Mai 09
Exercício sobre personagem principal e secundário. Fazer emergir o segundo, descrevendo-o, mais que o primeiro através de um acontecimento. 15 minutos. Ready?! Go!


Manuel Augusto Principal apanhava o mesmo autocarro todas as manhãs. Era o 45 apinhado que ia do Bairro das Lagostas para o Alto de São Gonçalo. Todos os dias era o terceiro da fila na paragem, atrás da mesma velhota de sempre e do mesmo miúdo desaparecido atrás de uma enorme mochila de sempre.

Nessa manhã, esta em que nos encontramos, Manuel Augusto Principal estava na tal fila de sempre atrás dos etcs de sempre, mas por um qualquer desígnio do destino estava 30 cm mais perto da estrada. Foi assim, que o autocarro já atrasado, ainda apinhado e 45 desde sempre, lhe deu uma valente pantufada (ou autocarrada, porque de pantufa não tinha nada) no distraído ombro direito.




O aflito motorista, António José Secundário, precipitou-se porta fora na direcção do Principal, o caído, levantando-o de uma só esperança no desejo de o ver inteiro. Já conduzia naquela carreira há mais de 25 anos e todos os dias parava o autocarro naquela paragem de sempre, mas 25 cm mais longe do passeio. O que pelas minhas contas, e até agora, perfaz uma pantufada (ou a outra…) de 55 cm. Isto vindo de um autocarro tem que se lhe diga, e que se lhe sinta.

António José Secundário, mal dizia a sua quota-parte de centímetros ao lado, enquanto pensava nas consequências daquele acidente: ia ser chamado ao chefe de turno, depois ia ser chamado à direcção, ia ser suspenso 3 dias até se completar o inquérito e quem é que ia alimentar os seus 4 filhos, sobretudo agora que a mulher o deixara?! A sua impecável folha de serviço ia ficar manchada, já não era promovido a Condutores VII, já não seria aumentado em 23€, já não podia levar os miúdos de férias… mas afinal o que lhe teria passado pela cabeça para ter sido pai aos 50? E aos 52… e 54… 55… Ainda por cima, agora, sem ajuda. Tinha que arranjar alguém rapidamente. Estava decidido a por anúncio no jornal se fosse preciso.

Lá em Angola é que a vida era boa. Era um jovem despreocupado, livre de tudo e de nada… talvez fosse do tempo… ou do tempo. Tempo e tempo ajudavam muito em África. Deixara uma promissora carreira de Engenheiro mecânico para ser motorista na metrópole… ah se o arrependimento matasse… era só temporário e já lá vão 25 anos… e agora esta falha…

- Olhe, importa-se?! Eu é que sou o Principal e continuo aqui estendido, inteiro mas ainda estendido!

- Desculpe… distraí-me com pensamentos secundários!
Bilhetado por Brunorix às 19:39

03
Mai 09
Sentado na espera do nada, esperei que o destino chegasse diferente. Sabia de cor o salteado do que sempre foi, mas uma esperança sempre se rega. Pode ser que cresça.

Não cresceu.

Esperancei dias de sol entre neblinas e nevoeiros matinais, os tais. Soprei as nuvens da cinzenta razão e provei o algodão doce em deglutir salgado. Abri as janelas do tempo para deixar passar a luz. Pode ser que ilumine.

Não iluminou.

Subi escadas de passado e espreitei portas de futuro com a convicção do presente. Apertei mãos de conveniência e dei palmadinhas nas costas da ilusão. Pode ser que sinta.

Não sentiu.




Levantado na madrugada do ontem, sinto cansaço no corpo de amanhã. Tenho dores nas articulações da alma e não consigo correr no caminho da esperança. Gritei na mensagem do interior. Pode ser que ouça.

Não ouviu.

Revelei cartas de angústia em envelopes de revolta. A letra de tinta permanentemente marcada em papel crivado, escorria sangue de intenção. Pode ser que leia.

Não leu.

Saltei barreiras de silêncio em metros revelados. Comemorei datas de imposição em vitória de consumo sem sentimento ganho. Conquistei (im)posições em maratona desconhecida. Pode ser que saiba.

Não sabia.

Sentado de tanto esperar, nadei nas palavras vividas e mergulhei por baixo dos sentidos. Em dia de linhas oferecidas conjugo verbos de vergonha em textos de ansiedade. Pode ser que escreva.

Já escrevi.



29
Abr 09
Dona Caneta Perneta e Dom Papel Fiel, amantes de todo o sempre, encontravam-se em tardes de luxúria escrita sempre que as imposições de autor os juntavam.

A Dona Caneta, sempre fogosa, saltava-lhe a tampa de contentamento quando avistava o seu bem amado. Despida da cintura para cima deslizava a sua roliça vontade nos imaculados braços do seu amante. Atrás de si um rasto de marcadas palavras, deixava testemunhado no tempo a paixão gráfica que os unia.

Dom Papel, aparentemente passivo, fazia da sua grandiosidade e possibilidade de tudo permitir, o leito da terna tranquilidade. A fertilidade da sua orientação guiava a sua amada na direcção do florir intentos de criação.




Os seus libertinos encontros tornavam inspiradas as mais infelizes linhas de pensamento escrito, debruando a ouro literário as capas de intenção. Do amor destes Dons, nasceram contos e romances, ensaios e outros catraios, em palavras de amor permanente. Desde que a tinta tem pinta e que o papel sabe a mel, esta relação tem sido verdadeira e conhecida. Se há amor universal e fiel, é este que une Dona Caneta e Dom Papel.

A história das palavras e da arte de deixar escrito, assenta a sua herança e as suas raízes, neste singelo destino de dois amantes que nasceram para se encontrarem e deixarem marcados nas linhas do tempo os traços da sua paixão.

A eles, ergo a minha taça de orgulho escrito e concretizo o seu amor pela minha mão de escrevedor.
Bilhetado por Brunorix às 16:51
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16
Abr 09
O pensar de cada um colide nas protecções frontais do pensar de cada outro. O choque de feitios provoca mortos na estrada e feridos nas quadras festivas. Na hora de contabilizar perdas, lambem-se feridas de orgulho.



Seguia o veículo A carregado de folares de bandeira branca e ovos de um chocolate amargo de tanto tentar, no sentido S-N (Sacrifício – Naupático). O veículo B, em sentido contrário, transportava embrulhos de natal passado com laços de frete vermelho. Cada um ostentava as suas cores e defendia a sua bandeira com o orgulho da casa que defendiam. Rolavam estrada fora em pose de duelo medieval, empunhando cada um a sua lança de convicção na certeza de derrubar qualquer cavaleiro de convicções opostas que se cruzasse no seu caminho.

Estavam preparados para tudo e para se cruzarem com qualquer um, excepto para se cruzarem um com o outro. Como em qualquer história em que se pretende provar algum ponto de vista a inevitabilidade do encontro adivinhava-se. Seguiam as duas embaixadas inchadas de razão e a passo de confiança, sem saber que na curva seguinte, esquerda para quem subia direita para os inversos, se daria o fatídico choque de titãs.

A e B tinham já contacto visual. Enquanto uma mão se crispa no volante e o pé carrega desenfreado no acelerador, a outra abraça com força redobrada a lança da convicção própria. Dá-se (a quem quiser) o choque. Estrondo ensurdecedor. Seguido de silêncio sepulcral. As populações de admiração local acercam-se dos acidentados, enquanto esperam as autoridades do ajuizamento. A sensação geral é de uma atónita loucura. O que será que queriam provar?



Nos escombros misturava-se o cheiro doce dos chocolates e folares, pintalgado de embrulhos e laços, com o agre da morte certa. As lanças partidas jaziam ao lado das respectivas quadras festivas, enquanto o sangue da estupidez humana escorria dos peitos abertos de orgulho em golfadas de arrependimento.

Para a história ficou o engrossar trágico das estatísticas de acidentes familiares, dos mal-entendidos e das relações mortas. Perderam-se, para sempre, as convicções pessoais e a certeza egoisticamente individual da posse da verdade e da razão. Como em qualquer morte, a certeza que ficou foi a de que aquele encontro não voltará a respirar nunca.
Bilhetado por Brunorix às 13:44

14
Abr 09
Incons(ciente) que o resultado poderia ser este, enviei algumas singelas contribuições para que escolhessem o menos mau. Afinal usaram todos o que muito apraz a modéstia da minha autoria, embora possa não parecer pelo antagonismo da primeira frase. No entanto, um bom texto deve começar com uma frase forte (mais modéstia, portanto).



A Escrita Criativa continua a ser uma paixão e em boa hora foi lançado este espaço de divulgação para quem quiser conhecer e saber mais sobre os cursos. Uma maneira de (re)descobrir muito do que somos e não sabemos, aprendendo a brincar com a imaginação através de algumas ferramentas.

Escrever é uma experiência de vida, que deve ser vivida pelo prazer da procura e da partilha. A matéria-prima é intrínseca a cada um, só é preciso aprender a moldar as palavras. Tentem...
Bilhetado por Brunorix às 18:53

06
Abr 09
Introdução – Exercício de utilização do mesmo personagem em diversas circunstâncias e condicionantes. Segundo exemplo, 15 minutos. Tem que começar num lugar alto a observar algo e tem cinco interrupções a inserir obrigatoriamente: “tenho saudades do tempo”, “será que perdi o meus dias ou os meus dias perderam-me”, “é mais azul quando dói”, “mas não, isso não”, “as coisas que voltam não voltam”


Acção:

Warajad Sterck Rashid estava na varanda da sua penthouse a fotografar as pessoas que se vestiam na pressa matinal. Incrível a quantidade de pessoas que o fazem de cortinados abertos e que confiam na descrição das alturas, esquecendo-se que há sempre alguém mais alto. Curiosas, também, as diferenças de janela para janela; nalgumas vêem-se corpos que se lamentam terem que ser tapados e noutras felizmente que o fazem.

Tenho saudades do tempo em que percorria, todo nu, os campos atrás da casa. A leveza de correr sem roupa, deixava fresca a erva do meu crescimento.



Deve ser por isso que gosto de corpos nus. Sobretudo os dos outros e especialmente os que ainda não conheço. Não há mistério melhor que desvendar o que se esconde por trás de cada peça de roupa. As belezas gritantes, os choques constantes, os desgostos de fartura e qualquer inesquecível escultura, aumentam-me a procura.

Será que perdi os meus dias ou os meus dias perderam-me nesta busca pelo corpo? Talvez tenha deixado lá na aldeia, o espaço que devia dar a cada um. Mas não o faço por mal, observo porque aprecio. A liberdade conturbada da minha infância é mais azul quando dói a razão. Nos dias em que me passa a dor, sinto-a verde e inocente e aí sim tudo parece no lugar certo.

Para ir à cidade obrigavam-me a vestir, mas não, isso não: antes ficar nu por aqui que vestido por lá. Costumava pensar. Como tudo mudou, agora adoro estar vestido a sentir a segurança da envolvência. As coisas que voltam não voltam a despir-se mais. Já não consigo correr nu, talvez a gravidade tenha a sua influência na mudança de gosto. Que desgosto…

Bilhetado por Brunorix às 19:06

Introdução – Exercícios de utilização do mesmo personagem em diversas circunstâncias e condicionantes. Primeiro exemplo, 10 minutos. Tem que falar dos pais, de sítios onde viveu, do acontecimento mais importante da sua vida, da actividade principal e onde vive agora.


Acção:

Warajad Sterck Rashid era filho de dois pais. Homens. Nunca soube quem era a sua mãe biológica, mas também nunca sentiu muito essa falta pois um dos seus pais cumpria bem o papel de mãe. Viveu grande parte da sua vida numa aldeia do Norte da Índia, porque a sua peculiar família não era bem aceite na cidade. Entre outras coisas, aprendeu a ler e a escrever em casa. Os seus pais eram, respectivamente, um fotógrafo (o pai-pai) e um escritor (o pai-mãe).



A aldeia onde vivia só tinha população velha e provavelmente a maior parte deles nem conseguiam ver ou ouvir bem a sua família. O acontecimento mais marcante da sua vida, deu-se precisamente com a mudança de um jovem casal e da sua filha, lá para a aldeia. O impregnado ar feminino que passou a respirar mudou-lhe mais que a sensibilidade nasal.

O mundo que conhecia foi-se transformando aos poucos, ao ponto de aos 20 anos abandonar a aldeia para ir viver para a cidade. Queria ser realizador. O facto de sofrer de crise de identidade ajudava muito na criação de personagens para os seus filmes. Adorava viver cada uma delas, e confundia na sua cabeça a nitidez da ténue linha entre o que era ele e o que era cada personagem. Por isso se especializou em filmes sobre sonhos que nunca contam a verdade.

Actualmente vive numa penthouse de um enorme prédio na cidade. Sempre que não está em filmagens sai para a rua com o seu inseparável fotómetro e a sua velha Polaroid, em busca do filme seguinte.

Bilhetado por Brunorix às 19:02

02
Abr 09

O pio da pia

António da Silva Albano, de todos o mais bacano, era senhor de alta voz em porte de siglas ASA. Não pilotava de ganha-pão, mas cantava noite fora pela mão em recantos de auditório e casa. Soprava notas de timbre certo, sempre de peito aberto em fulgor de paixão cantante. Não há espectador que não se levante, e de palmas não seja exuberante sempre que o Albano, a seu jeito, cante.

Assim vivia por notas e harpejos de voz, sempre em constante cantoria. Quem o visse em franzino colo de avós, jamais lhe almejaria futuro, quem diria?! Cantava para emigrantes, senhores e outros doutores, especialistas e pedintes, alguns também pedantes, surdos e outros mudos, mas todos seus ouvintes. Festas e cerimónias, restaurantes, bares e outros lugares, alguns discos e radiofonia também constavam das suas parcimónias.

Tudo cantava sobre rodas até ao dia em que nem mais um pio. Albano abriu a consola, vergou olhos e rodopiou a mola, mas som ninguém ouviu. Excepção a uma pequena nota não musical, que do esforço saiu de mansinho e odorou mais para o lado do mal. Também mal, disse da vida má sorte, em desespero de som algum que parecia dentro de si como que fechado em caixa forte. Vieram médicos e especialistas, damas de santo e engenheiros, padres e outros curandeiros, mas ninguém o punha a cantar. Azar!



Chorava em silêncio mundano, Albano já menos bacano, pela desgraça da sina sua. Por companhia e inspiração de raça ofereceram-lhe então uma catatua. Bem se esforçava o pobre animal, por devolver a voz a seu dono, mas apagado que andava afinal, nem dormia nas horas de sono. António da Silva Albano, caía no mais fundo do desespero humano.

Esperava milagre sem força, sentado na espera do dia em cadeira tom de agonia. Até que desmaiou de desalento, caiu sem contentamento e bateu com a cabeça na pia. Pois se do piar tinha sido o mal, assim como foi também agora voltou. Albano a cantar acordou uma espécie de hino nacional.

Voltou a alegria a casa de música, voltaram as vozes e as palmas em explosão, voltou o esplendor e as cantigas de rua, voltaram os coros e os trinados de mão. Albano, de novo bacano, seguiu cantando a vida em notas de feliz canção. Até hoje não voltou a perder a pio e nunca se soube o porquê da razão.

Moral do desfecho musical: em caso de aflição afónica é cabecear qualquer pia atónita. Serve para outras questões, maleitas, frases feitas e males de índole mais geral.

Bilhetado por Brunorix às 18:29

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