2ª ParteDescrição feita pela irmã W. segundo os mesmos pontos:
Estou cansada! Estou farta! Estou desgastada… uma vida inteira na sombra dos Wellington masculinos! Primeiro, segundo, terceiro…
Felizmente que o meu irmão não teve filhos e também não vai ser a minha filha a continuar esta palhaçada! Quando o Gervásio morrer, acabaram-se os estúpidos fraques e a ideia absurda de que um Wellington só caminha pelo lado esquerdo! Felizmente que eu nasci para caminhar livremente pelas ruas.
Só me custa que o Gervásio tenha enlouquecido daquela maneira… até parece mais velho do que é, sempre a tocar a maldita grafonola todas as tardes, com o mesmo disco que de tão gasto já nem se ouve há mais de 20 anos! Tudo porque no dia em que a mulher dele saiu de casa, era aquele disco que tocava.
No meio do meu ódio, não deixo de ter pena do meu irmão que acabou por ser uma vítima desta loucura de “linhagem Wellington”, como lhe chamava o meu pai, mas também não posso deixar de compreender a Adelaide… quem é que aguenta viver com um Wellington, ainda por cima III?
Eu sei que somos todo o resultado das somas e subtracções da vida, mas há contas muito desiguais e restos que não batem certo… só porque não nasci homem! Que culpa tenho eu?!
É estranho… não me lembro de alguma vez ouvir o meu pai a dizer o meu nome todo. Era só Gertrudes para aqui, Gertrudes para ali, nunca o Wellington se juntou! Parecia que eu não tinha direito ao ferro quente em forma de W, assim como uma vaca tresmalhada no meio daqueles touros todos.
3ª ParteDescrição de outra pessoa que o conheça bem, segundo os mesmos pontos:Comecei a investigar este estranho caso na noite de passagem de ano. Findava o 72.
Estudo as passadas deste homem há mais de 6 meses. Sei tudo sobre ele. Estudei a sua vida intensivamente. Exaustivamente. De uma maneira que já me farta e enjoa!
O que interessa por agora são os factos! Gervásio Wellington III, era um homem de 61 anos que descendia de uma família ilustre, mas de estranhos hábitos. Segundo a sua irmã, não ficava bem a um Wellington caminhar na rua sem ser pelo lado esquerdo. O fraque era vestuário de consumo único e obrigatório! As rotinas faziam destes homens os ilustres portadores do estandarte familiar: os mesmos horários, a mesma roupa, o café sempre no mesmo café sempre à mesma hora, o jornal comprado no mesmo sítio… um imenso círculo fechado e rotineiro.
Mas o facto mais importante de todos, é que Gervásio Wellington III, apareceu morto na noite de passagem ano a ainda não fazemos ideia quem o matou, nem como, nem porquê.
Não havendo mais ninguém na sua vida, e com todo aquele ódio exacerbado, penso logo na irmã, mas…
4ª Parte
Continuação da 1ª parte, descrevendo a casa de Gervásio W.:
Tudo aconteceu por um simples acaso, como muitas das notas que pautam a nossa vida.
Num abafado dia de Julho, entrei ofegante no prédio depois de uma quentíssima caminhada vindo da escola. Sentado no primeiro lance de escadas estava o senhor Gervásio com a pele da cor gasta e cinzenta do seu fraque e encharcado em suor.
A medo aproximei-me e mal consegui perceber as parcas palavras que me dirigiu, mas que pareciam suplicar que o ajudasse a entrar em casa. A muito custo, lá conseguimos chegar ao 2º andar. Uma vez entrados, pediu-me que o ajudasse a sentar numa poltrona de um cabedal muito gasto, nitidamente “mono-rabo”, que se encontrava numa sala pesadamente antiga, entre a janela e uma mesa onde estava uma grafonola.
Depois de se encaixar naquele assento, perfeitamente demarcado em redor do seu corpo, pediu-me que lhe trouxesse um copo de água.
A cozinha ficava no fundo de um enorme corredor, que tinha várias portas dos dois lados. Caminhei por aquela estreita passagem, sentindo um ranger castanho a cada passo que dava e fui observando as fotografias daqueles homens diferentes, mas que pareciam todos iguais… vestiam da mesma maneira e tinham todos a mesma pose de superioridade altiva, numa delas reconheci o senhor Gervásio.
Umas das portas estava aberta e não resisti a espreitar para uma sala enorme cujas paredes se encontravam cheias de livros. Uma secretária e uma cadeira no centro, compunham o ramalhete mobiliário daquela divisão. Senti um peso cultural imenso naquele ambiente e invejei a possibilidade de poder ler todos aqueles milhares de livros.
Apressei-me a ir buscar a água e voltei para junto do meu vizinho, que já devia estar seco de tanto esperar. Com o seu adormecer agradecido, decidi explorar melhor aquela casa tão misteriosa e fascinante.
Ao lado da sala havia uma porta que estava fechada à chave. Na porta seguinte ficava o quarto do Sr. Gervásio onde sobressaía um magnifico toucador cheio de objectos que nitidamente não lhe pertenciam e que se notava não serem mexidos há muito tempo, tal era o pó que os cobria. Transpirava dor naquele quarto, envergonhado saí…
Não tive coragem de abrir mais nenhuma porta, mas senti que a principal já estava aberta, pois a partir desse dia passei a frequentar amiúde a casa do meu vizinho Gervásio Wellington III.
A cada visita fiquei a perceber o que leva um homem a viver eternamente um amor acabado e a colocar com uma esperança mórbida o mesmo velho e desgastado disco, na mesma velha e desgastada grafonola. Os estranhos sons que se ouviam pelo bairro, não eram mais que o choro do coração daquele homem!