A solidão dos acompanhados esconde a poesia interior em frases de banalidade diária: bom dia, até logo, boa noite, até amanhã… – O relógio da estação mostrava em monotonia de movimento que ainda faltavam 20 minutos para a partida do seu funeral. Tinha tempo. Sempre tivera.
Tentou secar algumas considerações para ver se aquecia a partida. Despiu o casaco molhado de mágoa e sentou-se na determinação da espera reflectindo entre pensamentos sobre a questão que o atormentava: será que alguém iria ter saudades suas?
O mesmo relógio, da mesma estação, na mesma monotonia, mas alguns movimentos mais à frente, mostrava que os 20 minutos tinham passado. Já não tinha tempo. Nunca tivera. O seu funeral estava a partir. Correu na determinação do alcance e com uma agilidade rara em si, saltou de uma só convicção deixando a plataforma boquiaberta enquanto entrava na primeira carruagem.
Sacudiu o casaco já seco de pensar e olhou em volta para algumas pessoas que o choravam. Familiares que nem sabia que tinha, dividiam lenços do mesmo papel enquanto fungavam entre dentes a perda do seu ente querido. Algumas recordações sobre o seu crescimento trouxeram sorrisos luminosos no meio de tanta lágrima cinzenta. Ali parecia estar a ser recordado com saudade.
Passou para a carruagem seguinte, onde os seus amigos de toda a vida confraternizavam entre copos e cantavam sobre as histórias da saudade. Acabou por rir também ao rever tantos episódios em que era protagonista e já nem se lembrava. Ali era decididamente recordado com alegria.
Na carruagem seguinte, além de confirmar que ninguém parecia dar por ele desde que saltara da plataforma, não reconheceu ninguém. Algumas frases depois, fez-se luz no seu espírito e percebeu o conteúdo: eram os seus leitores. Todos aqueles que o leram e gostaram e que não o conhecendo pessoalmente agradeciam todas as viagens que as suas palavras lhes proporcionara, todos os sonhos das suas frases, toda a imaginação da sua pontuação, toda a poesia das suas prosas. Ali era recordado com admiração.
Saltou para a última carruagem e não viu ninguém. Cheirava a destino e uma luz ténue de resignação apontava para o meio onde estava o seu caixão aberto e vazio. O interior acolhedor estava à sua espera ansiosamente e pedia em tom mavioso que se deitasse. Estava tudo preparado para a chegada à estação terminal. Esboçou movimentos vários no sentido da sua horizontalidade final, mas não conseguia concretizar. Num repentino assopro de revolta puxou a alavanca de emergência e tudo parou.
Saltou para a paisagem fresca de esperança e correu ao longo das carruagens no sentido da partida. Todos se amontoavam nas janelas para o ver passar. Uns pediam autógrafos, outros pediam canções, outros pediam atenção, mas todos sorriam e acenavam de emoção. Ainda não estava preparado para aquela viagem.
Voltou para o lugar de sempre, sentou-se e escreveu até à manhã do conto seguinte. O sol estava de novo ligado.