Cheirava a fruta e a medo. A separar, um muro de pedra e areia que se ia desfazendo com o passar dos anos para o lado de lá e dos corajosos em sentido inverso. Sempre foi o grande baptismo daquela escola: conseguir trazer uma maçã para provar a ida. O sabor? Esse podia ser deitado fora.
Quarta-feira de aventuras. Já andava naquela escola há 3 meses e ainda não tinha saltado o muro. Já não conseguia fugir ao ritual de aceitação. Tinha chegado o meu dia.
Regras: saltar o muro que ficava nas traseiras da escola e voltar com uma maçã.
Primeira condicionante: do lado de lá do medo havia uma quinta com muitas árvores.
Segunda condicionante: as de fruta eram as mais longe do muro e as mais perto da casa.
Terceira condicionante: conseguir voltar são e salvo porque, segundo constava, o maluco do velho que lá vivia disparava sobre os miúdos que lá entravam.
Quarta condicionante: disparava mesmo. Embora fossem tiros de sal, faziam uma ferida dolorosa e eram o símbolo da derrota.
O ritual exigia que as regras fossem ditas em voz alta momentos antes da partida. Nesse dia nem as consegui ouvir e deixei que fossem abafadas pelos nervos. Os sons iam para o estômago e na cabeça só ouvia o coração. Já tinha as mãos encostadas à inevitável escalada e ainda hesitava. Os olhares de todos convenceram-me.
Passar para o outro lado era a parte fácil pela execução, mas difícil pelo que se seguia. Quando aterrei no chão que me esperava, estava a suar. As pernas tremiam e o corpo colava-se ao muro. As árvores eram horrivelmente bonitas e assustadoramente convidativas. Caminhei na direcção do cheiro, mas parecia nunca mais lá chegar. A única árvore que tinha maçãs, ficava mesmo junto à janela da casa do velho.
Dois troncos antes do objectivo fruto, parei para respensar (que é uma espécie de respiração do pensamento), acalmei as pulsações e comecei a correr com a determinação mais assustada que tinha. Agarrei a maçã com a pressa da alegria e no regresso vitorioso deixei-a cair.
Voltei atrás para cumprir o destino honroso e no momento em que apanhei o frutado prémio, ouvi um berro que me aqueceu o pânico…
(continua)