Algumas portas ao lado a doença tinha começado a acabar. Fazia as malas dos últimos dias e preparava-se para mudar de corpo. Tinha cumprido a sua missão ali, fazendo o possível por deixar bem vincada a tosse, a febre e as dores de tudo e mais alguma coisa.
No andar de baixo, a partilha dava as mãos ao destino e reforçava os laços de vida com um sincero amo-te. Tinham passado a noite enroscados no sofá a beber chá de alegria e a ver filmes de futuro com um sorriso nos lábios. Para aquecer o momento tinham-se tapado com a manta da tranquilidade enquanto se divertiam a baralhar pernas.
A satisfação pessoal, que morava na rua de trás, vestia os mais pequenos projectos de vida (a esperança, o amor e a certeza) e preparava as lancheiras da escola, revendo mentalmente todos os passos da rotina diária. Era fácil esquecer alguma coisa, afinal sempre eram 3 filhos e havia muito para preparar.
Na rua tudo começava a mexer: o tem que ser já colocava as frutas e legumes, tudo fresquinho, na direcção de quem passa; o outro dia alinhava as tesouras e os pentes esperando o primeiro cabelo que se viesse guilhotinar; o mais cedinho escrevia a ementa do dia enquanto arregaçava as mangas do pequeno-almoço que tinha que se tornar grande; a vida igual abria as persianas da montra depois de ter contado todos os botões, fechos, fios e sedas; o representante acordava o representado para que atendesse os fiéis que passassem as portas da necessidade em busca das primeiras respostas do dia; o frete dos outros varria os restos da noite alheia e baldeava a consternação mútua com água renovada de esperança.
Enquanto os mortos se conformavam os vivos não. Por todo o lado, tudo seguia o caminho de sempre enquanto todos se levantavam da profundeza do descanso para dar início a mais um dia de tanto.
Do alto, uma Estrelinha (a descansar do mar) observava com alegria a dádiva do dia que nascia lá em baixo. Satisfeita, afastou as nuvens para o lado e levantou-se para ir acordar o sol. Estava na hora.