Escritas do fundo do mar

18
Dez 08
Eu estava naquele limbo vegetativo de quem ainda não acordou, mas já devia, naquela faixa de transição de preto escuro adormecido para branco ténue ligeiramente acordado, ainda sorria não sei de que sonhos e os olhos ainda não tinham descolado, quando começo a ouvir uma voz de princesa de rua a cantar ao tom da “Noite Feliz”:

-Broooche… Broooche… Broooche!




Não sei se era para mim ou não, mas continuei a sorrir no meu doce acordar. Não me estava a parecer mal e de fantasia em fantasia se constrói um novo dia. Por isso deixei-me ficar mais um bocadinho a ouvir na expectativa e passado algum tempo, de novo a mesma voz de desafinado desejo sempre com a natalícia melodia do “Noite Feliz”:

-Broooche… Broooche… Broooche!

Desta vez já tinha dado um grande passo pela porta final do limbo e tal como os olhos, também os ouvidos já tinham descolado, e pude ouvir no rádio:

- Venha ao Almada Fórum, Fórum Montijo e Fórum Barreiro e ganhe um magnífico Porsche!

Afinal era um Porsche! O que a senhora cantava a plenos pulmões de natal era: pooorsche, e era um anúncio de rádio. Levantei-me na desilusão do reconhecimento e pensei que ainda não era desta que eu podia cravar ao peito aquela “espécie de fivela de metal ou de pedraria, provida de alfinete, que as mulheres usam como jóia, para prender peças de vestuário”. Adiei a minha fantasia e segui com o dia.

Há anúncios que me baralham!

Bilhetado por Brunorix às 11:32
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O humor é uma tentativa para libertar os grandes sentimentos da sua parvoíce.

Raymond Queneau


Bilhetado por Brunorix às 11:29
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17
Dez 08
Em cima da pequena mesa de madeira, dois pratos de sopa já comida dormiam ainda sujos. Não percebeu se comera duas vezes ou acompanhado, mas o resultado final era o mesmo: estava sozinho. Voltava a estar frio e a paisagem acinzentara de novo.

Tentou extrair do sonho a força para o passo seguinte, mas a perna da motivação não se mexia e a da vontade estava coxa de esperar. Decidiu ir tomar um vigoroso banho da temperatura possível, naquele cubículo partilhado no corredor, que alguém ironicamente chamava de sala de banho.

Saiu à rua para procurar esperança e quem sabe trabalho. Longe iam os seus tempos de escritor e desde que a sua caneta de imaginação secara, nunca mais tinha conseguido escrever uma única palavra. Desde essa altura que não parava de descer escadas na vida e em dois anos passara do tudo ao nada. Já nem nome tinha.




Caminhava na tentativa de se lembrar quem fora quando um choque de coincidência bateu na sua cara. Um papel gasto e sujo continha apenas uma morada. Sem saber porquê, decidiu experimentar e fez-se à rua procurada.

Quando chegou, subiu ao 3º andar e dirigiu-se à única porta, verde, que ficava no fundo de um corredor de expectativa. Como não havia campainha, bateu com força na porta de madeira e à terceira pancada a porta abriu-se. Do lado de lá do espanto, um magnífico jardim de todas as cores convidava o seu olhar a entrar. A imensidão perdia-se de vista e o seu queixo caía na incompreensão dos sentidos. Até o cheiro era real.


(continua)

(franceses de Alcochete)

- Bobby, meu petit chien, vem ao dono!
- Olha, amanda
-lhe este pão seco a ver se ele vai buscar.
Voiiimmm
(som de pão seco a voar)
- Bobby, buscó pan, busca!



Bilhetado por Brunorix às 11:02

16
Dez 08
Percebendo o recado que o destino lhe mandava, levou aquele corpo e o dono que o habitava para o seu quarto. Mesmo frio e cinzento era melhor que aquela rua de Inverno solitário. Ofereceu banho e roupa lavada a um incrédulo ser de novo humano. Conversaram toda a noite, partilhando um pão e um prato de sopa.

Descobriram-se amigos de conversar e pintaram de várias cores os cinzentos de cada um. Juntando as memórias boas individuais, conseguiram fazer um conjunto de doces recordações que comeram em fatias iguais. Sentiam-se cheios da sobremesa e adormeceram no cansaço da partilha. O quarto estava quente pela primeira vez.

Decidiram formar uma empresa de capital vontade e começaram a vender determinação juntos. Escreveram crónicas de descoberta, contos de futuro e romances de certeza. Todos os dias voltavam ao quarto com mais matéria-prima para escrever. Escreveram e venderam, escreveram e venderam… escreveram e venderam.

As paredes do quarto começaram a afastar, o soalho já só rangia de contentamento, o cinzento iluminou-se, o calor entrou e as meias coseram-se. Agora que tinham mais divisões, começaram a escrever separados. O capital aumentou e as vendas também. Formaram uma editora…




Acordou enregelado esticando o fino cobertor que já não se via de tanto esticar. Sentou-se na cama de molas ainda tristes e olhou a meia ainda rota. Voltara sem nunca ter saído.


(continua)

Bilhetado por Brunorix às 19:50

CORES DE UM CINZENTO SÓ

Era um quarto que se devorava em três passos. Cinzento de vontade e bafiento de desanimo. Estava frio e o chão rangia a castanho esquecido. O atraso na renda desse mês estava mais perto que a maneira de a conseguir pagar.

Sentou-se na cama de molas tristes, que lhe arranhavam a dignidade, e pensou na saudade. Sobretudo, na saudade que tinha de não ter saudade, pois essa era sempre a primeira carta que caía no seu castelo de sonho instável.




Olhou para a meia rota de desleixo e chorou. Chorou pela vontade.

Sentiu toda a solidão do mundo no seu quarto e olhou a paisagem da sua janela. Era de dia e estava sol, mas os seus olhos só viam escuridão. As paredes aproximavam-se no adensar do desalento e percebeu que tinha que sair. Algumas roupas gastas mais tarde, cheirava a cidade no seu interior e caminhava na razão do pensamento.

Calcorreou colinas de infância e aproximou o Tejo ao olhar. A cidade corria ao ritmo das castanhas e o frio encolhia vaidades. Observou todos e cada um, e pensou com inveja onde iriam com tanta certeza, com tanta vontade de lá chegar.

No canto mais frio do Paço, um monte de cartão escondia um corpo. Dormia de sujidade, frio e esquecimento. Aproximou-se e tocou no que parecia ser um ombro debaixo de roupa velha. Reagindo ao toque, o corpo virou-se e fixou o seu horror de espanto: era a sua cara que ali estava, debaixo de muito cabelo e barba!

(continua)

* Estado de vazio. Oco.


E lá foram. A mãe chegou do outro lado do mundo e levou-as para a casa onde pertencem, para o seu refúgio de vida. Agradeceram na saída o que receberam desde a entrada. Parece que gostaram.




Deixaram uma porta aberta na saudade, mas o tempo fecha todas as portas e abre outras tantas. O silêncio voltou ao vazio e não restam mais recordações que os despojos da festa. Gostámos de as ter por cá e podem voltar quando quiserem, esta é uma das portas que está sempre aberta!
Bilhetado por Brunorix às 13:22

15
Dez 08
“Que acontecerá quando já não houver mais folhas no caderno vermelho?”. Estas foram as últimas palavras escritas de Daniel Quinn (que podia ser Dom Quixote, por iniciais), antes de desaparecer.

Esta primeira história da Trilogia, que também pode ser lida em formato BD, mistura real-ficção com mistério-fantástico. A brilhante tríade narrador-autor-personagem, baralha-nos da confusão o prazer da leitura. Paul Auster entra e sai do enredo como espectador participante. Uma originalidade ímpar na escrita misteriosa, deixa-nos sem perceber bem a fronteira do concreto e o horizonte da fantasia. Que pensar de tudo isto?! Quantos narradores existem?




A amálgama de certezas incertas, dão mote a uma constante dúvida no dado adquirido... ou não! Uma história sobre histórias, que cruza o que pensamos saber com o que podemos ficar a pensar.

Interpretações muitas, poderão sair da leitura de cada um: o escritor que se refugia no pseudónimo, a tragédia não sabida sobre a sua família, a misteriosa verdade dos Stillman, o autor como participante, o desaparecimento de Quinn...

Neste segundo livro do Clube, façam da opinião a partilha do entendimento. Perguntem, respondam, comentem, alvitrem... participem!



P.S. - Próxima 2ª feira (22/Dez), falaremos da segunda história: Fantasmas.


Na aurora da cidade onde todos dormem, menos eu, nasceu uma nova vida de confiança. Um espírito que caminhará livre onde os outros se sentam, que se deitará onde ninguém quer estar, que dormirá onde todos acordam.

No entanto, é madrugada nessa nova vida. O amanhecer sente fome no pensamento que o impele para o caminhar. A tarde faz partir e a noite senta as ideias, obrigando a fazer do sonho o andar de amanhã. Urge escrever na dor e sentir força no que não apetece. Acontece.




És o homem do teu amanhã e a criança do teu ontem, porque fizeste desta passagem um crescimento válido para a viagem seguinte. Foste ouvinte. Soubeste escrever no caule da verdade, a determinação das tuas folhas, dos teus troncos. Deixa, não ligues aos ventos broncos.

Encontra em cada camada do sonho, a análise estratigráfica do teu sentir. Escava, mas não te deixes fugir. Abre a porta da coragem e deixa entrar os maus momentos. Sentem-se na sala do destino, discutam planos e plantas tracem mapas e linhas tantas.

Depois, sorri para a vida com a pureza do teu interior e com o espírito são de homem bom, agarra o amanhã como se não houvesse ontem! De caminho, leva estes abraços de escrita.




P.S. – Efeitos de uma insónia a pensar em ti, !
Bilhetado por Brunorix às 08:23

12
Dez 08
Era o seu sétimo conto. Sempre pensara que devia lavrar por escrito, em terra imaginária, um conjunto de fantasias que aquecessem de vontade os eventuais leitores. Por isso, continuava a alinhar letras lascivamente, a desenhar palavras numa posição voluptuosa e a cimentar frases num libido ordenado. Sentia um prazer húmido no que escrevia e sorria na invenção do desejo.

As suas personagens ardiam sempre de vontade e faziam do contacto físico a razão de viver. No entanto, sentiam amiúde uma carência nas descrições que sobre elas eram feitas. Sentiam falta de palavras lúbricas, que as descrevessem em todo o seu esplendor físico.

O número sete traria de ordem, uma diferença marcada. Decidido a colmatar a injustiça descritiva, começou pelo corpo feminino (que era o seu preferido) e entregou-se a alinhavar letras, palavras e frases:

Uma pele de fino castanho dourado, envolvia uma delicada estrutura de sustentabilidade lasciva. Uns pés de elegante recorte poético tinham a perfeição dos deuses na sua base.

Mesmo por cima, umas aveludadas pernas de beleza atlética faziam da envolvência corporal a sua dança de amor, terminando num triângulo de misterioso sabor, decorado por um topo piloso eroticamente aparado. Os seus lábios de vermelho ardente chamavam desejo a quem os provasse.

Por trás deste biombo de prazer, umas nádegas desenhadas a carvão esculpido, baseavam umas costas de cintura fina e límpida de toque, que olhavam a direcção para uns delicados ombros, que desapareciam numa dança de longos cabelos pretos.

Do outro lado da serpenteada descrição, uns voluptuosos seios de rigidez absoluta, cheiravam a medida certa ao agarrar de mãos, tendo no centro uma auréola escura de apontados mamilos.

Um pescoço de estátua grega, sustentava uma mescla de sensações faciais, onde sobressaíam uns enormes olhos de um prazer castanho e chamativo. A expressão de inocência experiente, soava a penetração dançante. A sua boca de lasciva textura guardava uma língua de doce pecado.




Parou de escrever. Assim que pousou a caneta de tinta erótica, todas as letras se misturaram e começaram a ganhar forma. Um tornado de palavras ergueu-se do caderno de contos e os parágrafos descritivos rodopiaram até moldarem o corpo que acabara de (d)escrever.

Afastou-se assustado e boquiaberto olhou para a nudez da mulher que saíra da sua imaginação e que estava à sua frente materializada das suas palavras. Não percebeu se estava a sonhar, mas ela caminhava para ele com um sorriso de criação familiar. Com um olhar de desejo suplicante, sussurrou-lhe ao ouvido:

- Tenho estado à espera desta descrição. Vim para retribuir em prazer…

Sem mais palavras, igualou de um arranque só a condição de nudez em que se encontravam e encostou o seu corpo ardente ao do estupefacto criador. A primeira sensação foi de arrepio desconhecido, mas a contactos dados tudo se transformou em cumplicidade escrita.

A excitação dele era evidente entre os dois e sem mais preliminares, ela saltou para o seu colo fazendo com que desaparecesse dentro dela, engolindo-o de um só prazer.

Enquanto ele segurava em virilidade as nádegas por si descritas, entrava furiosamente na sua criação imaginativa e sorria de satisfação por não se lembrar de um prazer assim na sua realidade. Movimentos de entrada mais tarde, rebentava num êxtase explosivo final.

Ainda suspirava do acontecimento, quando aquela beleza corporal recolhia ao caderno desfazendo-se de novo em letras e palavras. Confuso por ter participado no seu próprio conto, acabou por sorrir na dúvida, lamentando não ter descrito mais cedo uma mulher, com todas as frases que ela merece.
Bilhetado por Brunorix às 18:39

Ainda não tenho um ano de vida neste país e os fenómenos ainda me surpreendem. Sei que há Blogs, Bloguinhos, Blogões e Super-Mega-Ultra Blogs, mas mesmo assim não pensei que se pudessem influenciar tanto uns aos outros.

Tudo começou por uma oferta, que foi originalmente feita para utilização neste blog, mas que depois me pareceu engraçado partilhar com um blog, até mais próprio, daqueles Super-Mega-Ultra. Foi assim que o fenómeno, ilustrado pela imagem em baixo, aconteceu. Um linkzinho mágico, e num dia as visitas triplicam!




O Bilhete ia afundando de tanta visita, e ficou extasiado e vaidoso de tanto se mostrar. A euforia clicante vai passar nos próximos dias e a mediazinha modesta vai voltar ao dia-a-dia destas viagens. No entanto, foi uma experiência de troca muito estimulante. Obrigado Marujo!
Bilhetado por Brunorix às 11:56

Dar o exemplo não é a melhor maneira de influenciar os outros. - É a única.

Albert Schweitzer


Bilhetado por Brunorix às 11:51
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11
Dez 08
Ali, houve latas!


ALI ALATAS (1932-2008)


Bilhetado por Brunorix às 18:30

O esticanço de Natal lá me permitiu mais uma dentada em sandes de fora, e de novo entrei no reino mágico do meu café de bairro partilhado.

Já sorria de ansiedade perante algum capítulo mais para esta saga, quando começo a esmorecer a minha esperança de acção a cada dentada que dentava e a cada gole que goleava (não marquei nenhum golo, mas bebi um galão inteiro!). Será que não ia ter nada para contar?!

Os Rosos ainda se esforçaram a falar sobre a PlayStation 3 nova que a Rosa mandou vir para o Natal (para ela, note-se!), que o primo do não sei quantos, que mora na rua por baixo da outra, saca não sei de onde, com uma legitimidade que sabe-se lá e que ainda vem com 3 jogos: o PES 9 (o preferido da Rosa), um que não se sabe o nome e ainda aquele que é só porrada (sic, mais uma vez!)! Mas, dizia eu, nem esta partilha de jogos me animava e estava a ficar desiludido com o meu café.

Mas a goles tantos, surgiu a salvação da manhã! Os meus olhos ávidos de animação, perscrutavam tudo na esperança de compensar o nada que chegava aos ouvidos, e ali estava ele! Numa parede, um magnífico diploma (devidamente emoldurado) diplomava que o Roso tinha frequentado uma formação qualquer.

Bem, pensei de mim para comigo, já se percebe que as proeminências da Lena de Leste tenham ido passear, pois afinal estamos perante um funcionário devidamente diplomado! Terá ele um curso de hotelaria?! Alvitrei em pensamentos. Olhei com atenção redobrada, e até me aproximei mais da parede (eles não repararam, porque o Roso estava a explicar à Rosa a sequência para marcar cantos no PES) e maravilhei-me com a diplomaria diplomada:

Fulano de tal (também conhecido por Roso) frequentou a acção de formação de 2h, em higiene e segurança alimentar!




Toma lá! Duas horas de formação orgulhosamente escarrapachadas na parede! Brincamos ou quê?! Ah, pois é! Mas o que julgam deste café? Orgulhoso e mais descansado por não ter sido defraudado, estendi uma nota de 10€ para pagar e recebi um:

- Oh vizinho! Não tenho trocos, paga amanhã!

E pronto! Saí contente, sem pagar e a pensar que no meu café pode faltar pão, bolos, leite, até trocos, mas já mais faltarão episódios para contar!

Bilhetado por Brunorix às 13:24
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(pintores alentejanos)

- Ná acerto ca mistura de coris!
- Ondi?
- Aqui no tom, na vês?!




Bilhetado por Brunorix às 12:03

Dezembro 2008
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