Escritas do fundo do mar

31
Dez 08
O casaco assentava bem. Cinzento com as riscas necessárias, fazia da longitude a sua boa apresentação. Sentia-se novo e aquele convite para uma passagem de ano mistério remexia na sua expectativa dos últimos dias, ao mesmo tempo que o salvara de uma noite solitária. No envelope apenas uma morada e uma máscara.

À hora marcada dirigiu-se ao local indicado com a máscara prevista. Deixou o convite nos mascarados da porta e respirou fundo na entrada da ansiedade. Um ambiente amarelo-torrado de luz de velas acolhia suaves melodias de lascivo desejo, que se espalhava por várias salas. Por todo o lado mascarados vários. Uns mais vestidos que outros.


Deambulou por aqueles corredores de prazer onde corpos se engalfinhavam em várias cores e posições. Todas as formas e combinações eram possíveis, em comum só a máscara.

Suava no interior do desejo e não sabia bem o que fazer. Umas mãos autoritárias deram-lhe a resposta puxando-o para um recanto mais ardente. Outras mãos despiram-no. Outras passaram nas suas costas. Outras deixaram correr a sua imaginação, pois já não sabia quantas eram.

Do pudor só restava a máscara. A mistura de corpos passava na luz dos seus olhos e afastava-se do seu entendimento. Ardia de desejo e a ansiedade apressava a sua escolha. De todas as bocas nem uma palavra, apenas gemidos e abocanhados momentos. Estava tonto de tanto mudar, e de se levantar, e de se deitar, e de se levantar de novo. Muitos seios lhe tocavam a pele e arrepiavam-no de loucura. Penetrava aqui e ali, onde podia, onde lhe apetecia.

Um relógio humano, também mascarado, anunciava as últimas badaladas do ano velho enquanto os corpos se fundiam em comunhão de partilha. O êxtase e a loucura caminhavam muito próximo do fim. A temperatura de todas as humidades afogueava em aceleramentos cada vez mais rápidos. Na última badalada entrava o ano novo e saía o seu ultimo grito de prazer. Explodia em fogo-de-artifício.


De um salto abriu os olhos. Estava na sua casa, no seu sofá, na sua sala. Sozinho, olhou a madrugada do novo ano nos ponteiros do seu relógio de sonho. Sentou-se no desapontamento da realidade e lamentou a ficção.

Em cima da mesa apenas uma máscara.


P.S. - Homenagem a Stanley Kubrick.

Bilhetado por Brunorix às 18:17

30
Dez 08
Sentiu a envolvência do ambiente molhado como se estivesse a ser agarrado a toda a volta. Estava a sorrir na água e a nadar na descontracção de quem se sentia em casa. No seu pescoço surgiram duas aberturas e com a simplicidade de quem nunca dali saiu, respirou. Respirou no azul profundo do seu ser.



Nadou por todos os cantos como uma criança e explorou cada molécula de água como se fosse a última. No fundo daquele mar confinado havia uma porta de luz, para onde nadou de curiosidade. Uma ligeira corrente puxava-o na direcção de um longo corredor. Deixou-se levar pela alegria da deslocação e desembocou numa enorme massa de água.

Agora já havia superfície e dirigiu-se-lhe. Espreitou a medo fora de água e viu a cidade numa perspectiva de Tejo passante. Lembrou-se do seu quarto cinzento, mas ficou animado pelo colorido do seu novo meio. Submergiu de novo e ainda conseguia respirar. Superfície, fundo, superfície, fundo. Repetiu o trajecto vezes sem conta até ter a certeza que respirava nos dois ambientes.

Saiu da água em direcção às colinas de sempre. Estava seco. Caminhou apressadamente, já com saudades da água, no sentido do seu destino e só parou na mesa do seu quarto. Os pratos ainda lá estavam. Afastou-os com decisão e sentou-se a escrever. Escreveu sobre todo o seu período cinzento, mas com caneta de cor confiante. De noite voltou ao Tejo para dormir.

Continuou seco de dia a escrever e molhado de noite a dormir (não sem antes nadar de saudade). O ano chegava ao fim e a história que deixava escrita também. Finalmente descobrira a sua vocação: era um peixe escritor!

(fim)

Bilhetado por Brunorix às 13:23

Uma vida de sopro. Hoje, foi o último.



FREDDIE HUBBARD (1938-2008)


Bilhetado por Brunorix às 11:10

29
Dez 08
Está de volta a Bicha do Demónio agora em especial de Natal. Continua a fazer as delícias de muitos (as minhas também), pelo toque original da brejeirice. Em todos os registos pode haver qualidade e eu aqui reconheço-a.



Rasguei as páginas do caderno uma a uma, amarfanhei-as na mão e atirei-as para um recipiente de lixo na plataforma. Cheguei à última página no momento em que o comboio saía.



Assim deixamos a última estação desta Trilogia, num conto misterioso, escrito na primeira pessoa, que narra uma viagem rumo ao desconhecido na tentativa de reconstruir o passado. O tema da identidade permanece quando um escritor desaparece e deixa a sua obra para o amigo publicar (o narrador), criando uma teia entre as duas vidas e as dúvidas do narrador em assumir, ou não, a entidade do autor. “Parece-me agora que Fanshawe esteve sempre lá.”

A mão que nos conduz nesta linha de intriga, grita de mistério aos ouvidos do nosso entendimento. Fechamos, assim, a porta deste Quarto que foi terceiro no seu todo. Opiniões precisam-se… urgente!





Na vida nunca se deveria cometer duas vezes o mesmo erro: há bastante por onde escolher...

Bertrand Russel



Bilhetado por Brunorix às 12:42
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27
Dez 08
O tempo não pára nem espera por mim, mas eu esqueço-me dele. Quando me lembro, muitas coisas já passaram e eu fico atónito quando me apercebo que os gestos estão diferentes, os rostos também, que o peso dos anos se nota a toda a volta.

Tinha tudo embrulhado da mesma maneira já há vários anos, há vários natais, há várias reuniões de família. Este ano, no entanto, dei por mim a desembrulhar acontecimentos e momentos, imagens e mais paragens, convicções e outras ilusões.




Para minha surpresa, os interiores estão muito diferentes. Nem melhores, nem piores, apenas diferentes. Outras coisas nunca mudam e isso também é bom para voltarmos à casa da certeza com a segurança do conforto e o descanso de saber com o que podemos contar, ou não.

Mas a verdade, é que me deixei surpreender pelas mudanças. Acho que não estava preparado para olhar de outros ângulos, para sentir as diferenças com a naturalidade do caminhar no tempo e, sobretudo, para perceber que o meu interior igual não está preparado para as mudanças exteriores diferentes.

Foi um ano de desembrulhos surpreendentes.
Bilhetado por Brunorix às 16:23

23
Dez 08
Para que a noite de amanhã seja imbuída do verdadeiro espírito de Natal, é preciso contar a verdade sobre o senhor que vai trazer as prendas. Todos temos noção, embora uns mais que outros, do poder do marketing e a influência que as grandes marcas têm na sociedade e nos costumes, mas adulterar é que não!

Como é que se pode transformar uma roupagem linda, numa campanha publicitária?! Enganar criancinhas em todo o mundo, e paizinhos também, alterando a beleza das origens. Crianças, o Pai Natal nasceu assim (coitada da mãe dele):



Se os senhores da publicidade enganosa fossem honestos não se atreviam sequer a pensar em adulterar a imagem de um santo. Se eles queriam que o senhor bebesse o que eles vendem, que eu por acaso também gosto, quanto muito faziam isto:




Sem qualquer influência enganosa, eu até acrescentaria esta bandeirazinha desprovida de qualquer significado, assim do género pura coincidência, já que está com a cor certa...

Um Natal verde para todos!



P.S. – Os funcionários do Bilhete de Ida, desejam a todos os clientes, amigos, fornecedores e leitores um santo e Feliz Natal (verde) e um próspero (e verde) Ano Novo.

P.S.2 – Vá lá um comentariozinho para a caixa de natal, assim como assim já comemoramos 250 posts!


Bilhetado por Brunorix às 12:32

22
Dez 08
Pisou a relva, fofa de esperança, e sentiu os seus pés a afundarem na incerteza. Caminhou a passos de medo e embrenhou-se fundo naquele jardim de esplendor revigorante. Não percebia como era possível aquela imensidão dentro de uma casa, mas isso também não era importante no seu caminhar.

De um lado flores e mais flores com as suas cores preferidas. Já nem se lembrava como gostava de azuis, verdes, laranja… há vários anos que só via cinzento. Nas pétalas das flores, podiam ler-se frases escritas por si em tempos coloridos. Sorriu na leitura nostálgica da criação.

Do outro lado árvores dos seus frutos, alinhadas em pensamentos e graus de doçura. Aproximou-se da árvore mais frondosa e percebeu que em vez de frutos, havia fotos penduradas nos ramos. Fotos suas! Desde bebé até ao último dos seus dias coloridos.

Entre as árvores e os frutos um denso arbusto de nomes desfilava sobre o olhar atento da sua lembrança. Todas as pessoas importantes na sua vida estavam ali nomeadas. Alguns nomes estavam murchos de perceber, mas há medida que os lia floriam numa panóplia de recordações.

Deitou-se na relva e respirou todo aquele ambiente familiar. Aquele jardim era a sua vida em flor e o aroma a saudade acalmava o seu presente. Fechou os olhos na frescura do sonho e adormeceu a sorrir com uma tranquilidade há muito perdida.




Abriu os olhos. As costas doíam-lhe de novo naquele acordar de realidade. Era uma divisão escura e fria. Estava vazia. Levantou-se e dirigiu-se à porta degradada que dava para o corredor estreito por onde entrara. Bateu a porta atrás de si e arrastou-se no caminho da desilusão. No chão estava o papel gasto e sujo onde tinha lido aquela morada. Apanhou-o e reparou que a morada desaparecera dando lugar a uma única frase:

- Porta azul.

Olhou para trás e reparou que a porta que batera verde atrás de si estava agora enigmaticamente azul. Voltou atrás e bateu de novo no espanto. Desta vez, abriu à primeira pancada. Do outro lado do azul fechado, um azul imenso de frescura mostrava o fundo do mar. Mergulhou sem pensar.

(continua)
Bilhetado por Brunorix às 18:13

Segundo andar deste edifício Austeriano. “Um livro nascido de livros, é um poema em forma de narrativa sobre a escrita e os escritores, porque, diz-se, os escritores não têm vida própria - mesmo quando existem, não existem realmente - são fantasmas”.

Esta é a história de Blue, um detective privado encarregado de vigiar um homem chamado Black, num jogo claustrofóbico que o faz cair na armadilha que ele mesmo tinha criado. As personagens que, aqui, aparecem escondidas sob o nome de cores: Blue, Brown, Black, White, Green, Grey recontam, sob alegoria vários temas.




Estaremos perante uma história isolada na Trilogia? Uma continuação? Um complemento? Agucem os vossos sentimentos trilológicos e manifestem opiniões!

Entretanto, começa hoje a votação para a próxima escolha. Boas leituras e um natal cheio de livros!


20
Dez 08
Assim que o Super-homem entrou sorrimos na magia da emoção e do reconhecimento. Baixámos a cabeça em homenagem ao seu voar que nos levava de novo a ver o filme só pela música. Aqueles 72 brilhantes músicos reproduziam ao milímetro, todas as notas que estavam guardadas no nosso imaginário.


A riqueza da experiência tornava o nosso privilégio empolgante. Na impossibilidade de ficar indiferente à exaltação dos sons, mexíamos nas cadeiras os nossos tons e fazíamos da excitação a partilha. As nossas desculpas ao vizinho de trás que nos pediu silêncio, mas a verdade é que fomos duas crianças na noite das bandas sonoras e depois veio o Indiana Jones e o E.T., ainda apareceu o Senhor dos Anéis mais o Harry Potter e os Piratas, lá, lá, lá, tá, tá, tá… e a Guerra das Estrelas!





Saímos para a rua a trautear saudade e na vontade de estômagos que cantavam por nós, ainda tivemos o nosso encore de bifes de banda sonora com molho à Ribadouro, acompanhado de duas partituras de John Williams bem fresquinhas. Ca ganda noite, !
Bilhetado por Brunorix às 16:42
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19
Dez 08
Estava nua. Quase toda. Apenas o vermelho e branco de um gorro de natal contrastavam com a sua pele de chocolate preto. No corpo nada mais que a vontade de oferecer. Junto das outras prendas a sua nudez natalícia também o era.

Quando ele entrou na sala as luzes da árvore acenderam. Largou estupefacto os sacos que carregava e embeveceu-se a olhar aquela deusa de negra nudez, que estava na sua sala, junto da sua árvore, apenas com o seu gorro na cabeça.

Enquanto ela lhe retirava a roupa, ele ia hesitando na vontade e no desejo que lhe crescia, balbuciando cada vez mais descontroladamente que não podia… que era casado… que tinha vontade… que sempre fantasiara com isso… mas não podia… mas queria…




Um olhar de malícia experiente aproximou-se do seu tremor nervoso e num bailado de volúpia cantou as palavras certas:

- Podes sim. Eu sou a prenda que sempre quiseste.

Dito isto ajoelhou-se à sua frente. As mãos escuras sobressaíam naquele corpo branco e admirado, percorrendo todos os poros de desejo. O espanto aumentava-lhe a excitação e ainda na incerteza sentia toda a sua vontade a afluir numa erecção descomunal de delírio claro, que já desaparecia naquela boca de pele escura. A mistura das cores aumentava-lhe a temperatura do sonho.

Há muito desejava aquele encontro de peles contrastantes e quando se viu saído daquela boca experiente, ajoelhou-se também. Ainda a medo passou as suas mãos muito brancas naquele tronco de carvão escaldante que ostentava uns pequenos seios de bicos muito escuros e muito excitados. Não resistiu ao aproximar, e abocanhou-os mordiscando de prazer aquela rigidez fruitiva.

Ela deitou-se e ofereceu toda a sua abertura quente num rosa húmido, ansioso de o receber. Mais uma vez as cores. Branco, preto e rosa surgiam naquela palete de penetração. Por baixo, por cima, em todas as posições reinavam os contrastes lascivos das suas cores distantes de união. Não aguentava mais e rebentou na força das imagens.

Na sala, apenas as luzes da árvore se ouviam. Deitado sobre as costas ofegantes só teve tempo de um último vislumbre sobre aquele corpo de um negro escultural que já se afastava. Arriscou a dúvida:

- Mas quem…?
- Fui a prenda da tua mulher, Feliz Natal!
Bilhetado por Brunorix às 20:15

Acabou a dinastia Garganta Funda. Primeiro foi Ela, hoje foi Ele.



LINDA LOVELACE (1949-2002)



W. MARK FELT (1913-2008)


Bilhetado por Brunorix às 12:39

18
Dez 08
Enquanto se discute a unidade, se lê a dualidade e se completa a trilogia, é preciso ir pensando nas sugestões da próxima votação. Têm chovido de tal maneira sugestões que tive de abrir o guarda-chuva da selecção e deixar passar a única que foi feita até agora!

Sem preferência, com novidade e uma insistência, mas começando pela homenagem da participação (obrigado, Clau) aqui ficam as 3 sugestões da semana. Se não houver nenhuma outra (sugestão), serão estas as que serão votadas a partir da próxima (semana), a mesma em que há um acontecimentozito de menor importância que dá pelo nome de natal.


1 – O Solista, Steve Lopez – Não conheço, mas gostei da sugestão e li a sinopse que me “agarrou”. Já comprei e, escolhido ou não, está na minha pilha de desbaste.




2 – A Tábua de Flandres, Arturo Pérez-Reverte – Uma repetição porque continua a valer muito a pena e como envolve quem fez o quê, é bom de discutir.




3 – O Que Diz Molero, Dinis Machado – Um livro que constituiu uma verdadeira viragem no mundo da literatura portuguesa dos anos que se seguiram à Revolução de Abril. É, e será sempre, um livro a ler!



Bilhetado por Brunorix às 18:47

Desviei daqui... obrigado!


Bilhetado por Brunorix às 13:39

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